Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Querido diário

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“Querido diário,
Oi, hoje quando acordei estava uma chuva danada, aí fiquei vendo televisão, afinal não tinha nada para fazer. (…) Depois eu joguei War com meu irmão e como sempre perdi.” (K, 11 anos)

Tenho lido diários de escritores. Não gosto de reler os meus, principalmente os da infância… As minhas páginas são uma coleção de fracassos e eventos banais. No colégio, eu penava nas aulas de Educação física, onde havia duas Sílvias, a professora e a melhor aluna:

“Rio, quarta
Hoje foi um dia comum, tive educação física, e outra vez fiquei morrendo de ódio só que desta vez foram das duas sílvias (com letra minúscula). A pequena ficava dizendo que eu não sabia jogar, e como tinha gente demais ela dizia que era para eu sair. Quando alguém errava a bola ela falava: Aí, a bola foi na sua frente! E quando a bola ia pra ela, ela errava e dava um risinho idiota. Hug! que raiva. Karina” (11 anos)

Sei que nunca fui popular, mas guardava uma imagem de ter sido boa aluna, interessada nas aulas. Nos diários, escrevo para contar essas alegrias? Não. Encontro isso:

“Acho que o mês foi positivo, apesar de eu ainda não ter muitos amigos na escola. Estou muito chatiada com isso. Quarta feira passada eu fiquei muito chatiada, eu quase chorei. Quando formaram os grupos na aula ninguém quis que eu entrasse no seu grupo e ainda assim eu entrei porque a [professora] mandou. E elas ainda ficaram reclamando. Um beijão da Karina. Tchau!!!!!” (12 anos)

Na minha memória, eu era uma criança apaixonada por livros, que amava a biblioteca do bairro e a da escola. Nas páginas do passado, estou sempre vendo novela!

Oiíííí… gostou do meu oi? Poxa, eu tô chateada, sabe o que é? é que Água Viva acabou e agora vou ter que ver aquela novela ridícula “Coração Alado”. Não aguento mais essa Janete Clair, uma careta. (…) Hoje tive aula de Datilografia, adorei! (…) De noite a mamãe trouxe uma amiga pra cá. Jantamos e fui ver Planeta dos Homens e Malu Mulher. Um beijão, Karina” (11 anos)

Foi uma fase difícil: mudei de escola, tinha medo de bomba atômica, estava virando adolescente e percebendo que não tinha pai. Aqui e ali, registrei que gostava das aulas de datilografia e de andar de bicicleta; outro dia, minha empolgação por trabalhar como babá das minhas sobrinhas, uma praia, um livro, várias brigas de irmãos; eu sempre escrevendo cartas e querendo ser certinha:

Ah!! Uma coisa que eu tava louca pra te contar. Sabe a minha professora de violão, pois é, eu não tô confiando muito nela não, sabe porque? Eu vou te contar. Ela tem 13 anos, e não é lá maravilhas no violão, e tá sempre desmarcando as aulas falando que vai ligar e não liga. Sabe o que eu penso? Eu acho que ela não tem responsabilidade, né?! (K, 11 anos)

Coitada dessa professora, aos 13, sendo criticada pela aluna de 11!

Ao final, acho graça de perceber que, mesmo depois das histórias mais tristes, eu terminava o registro do dia com uma despedida animada:

Gostou? Por hoje é só! Um beijo e boa noite. Até a próxima. Já vou. Amanhã tem mais! (K, 11 anos)

Será que eu já pensava em escrever um blog?

A ideia de fazer esse post veio das minhas leituras atuais (depois conto) e dos cadernos feitos à mão pela artista Marilisa Mesquita, que registrei nessa página durante a viagem à Portugal no ano passado. São forradinhos de papel ou tecido, cada um mais bonito do que o outro — tem até caderno-colar. Nesse dia, no café da Fundação Gulbenkian, tive a sorte de apresentar a Marilisa às queridas Sonia Vespeira de Almeida e Ana Isabel Afonso, duas pesquisadoras que admiro imensamente. Ai, que saudades dos amigos de Lisboa! (Mais sobre Portugal nesses posts aqui.)

Sobre o desenho: Linhas feitas com canetinhas Pigma Micron 0,2 num caderno Stillman & Birn, Delta Series, Ivory, 270 gr., 8 x 10 inches. Depois colori com aquarelas diversas, deixando secar bem entre uma camada e outra. Na parte inferior do desenho, brincamos juntas com o carimbo (também feito pela Marilisa) e as tintas da aquarela mesmo.

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2018. “Querido diário”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3DW. Acesso em [dd/mm/aaaa].
 

 


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Lições de escrita com Agatha Christie (Parte 1)

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“Creio que não há ninguém no mundo mais inadequado para representar o papel de heroína do que eu eu. ” (Agatha Christie)

Imaginem uma menina nascida em 1890 na Inglaterra, tímida, reservada, lenta, sem escolaridade formal, criada para servir o marido. Agora, me digam: vocês acreditariam que essa pessoa se tornaria a escritora que mais vendeu livros em todo o mundo? Pois foi, ela mesma, Agatha Christie!

Passei o feriado lendo as 545 páginas da sua autobiografia, me divertindo e me impressionando com a falta de pompa e de pose dessa mulher que tinha tudo para ser esnobe, mas não é. O livro traz suas memórias familiares e afetivas, os momentos difíceis e os empolgantes, as muitas casas e viagens da autora, do seu nascimento aos 75 anos (ela viveu até os 85).

Os processos de criação não são o foco principal da autobiografia. Mas pesquei algumas lições de escrita que me estimularam a compartilhar com vocês. Aí vai a primeira parte.

Solidão e imaginação — Desde muito pequena, sendo uma filha temporã numa casa afastada da cidade, Agatha Christie era uma criança que brincava sozinha. O conceito de educação da sua família era bastante simples: entretenha-se! O jardim virava sua terra encantada, os bichos seus personagens, brinquedos se transformavam em carruagens, navios ou locomotivas. Estava tão acostumada a inventar as próprias histórias que contava para suas amigas, tendo o cuidado de mentir que tinha lido em algum lugar (já que não acreditariam se dissesse que eram pura invenção).

Isso me fez pensar no quanto atrapalhamos nossa imaginação consumindo conteúdos demais, quando o mais simples está bem à mão. Nossa própria imaginação pode ser uma fonte inesgotável de ideias. Claro que nem todo mundo tem essa facilidade — anos mais tarde, a própria Agatha viria a se espantar com a dificuldade de sua filha para brincar sozinha. Mas será que não vale a pena estancar o fluxo de estímulos e ver o que acontece?

Aprendizado sem professores — Agatha Christie nunca foi à escola. Sim, vocês leram certo: nunca foi a uma escola! Aprendeu a ler sozinha por volta dos 4 anos, apesar das contra-indicações da mãe, que achava a leitura nociva antes dos 9 anos. Mesmo nessa idade, continuou sem frequentar salas de aula. (Só aos 19 foi para uma escola de moças, onde as aulas eram de música e canto, e, mais tarde, fez uma formação em farmacologia.) Escrevia mal e com erros ortográficos, na sua própria avaliação, mas lia muito, principalmente contos de fada e livros para crianças. Sua primeira história escrita foi para a irmã, com objetivo de encenarem para a família. Desde essa época, gostava de de sentir medo e criou uma vilã “sanguinária”, palavra que provocou risos, mas gerou a crítica da mãe (que, mais tarde, seria sua grande incentivadora).

Avaliando essa época, Agatha acha que sua criatividade foi fortalecida por não ter ido à escola, onde tudo vinha “preparado demais”, gerando crianças dependentes dessa estrutura, sem conseguir pensar por si próprias. Será que essa ideia pode se aplicar ao mundo acadêmico? Ao enfatizar demais a importância dos autores e professores, será que não enfraquecemos nossa capacidade (e confiança!) de pensar por nós mesmos?

Cultivar suas paixões infantis — Em sua autobiografia, Agatha Christie escreve:

“Aquilo com que gostava de brincar quando criança é o mesmo com que sempre gostei de brincar vida afora. […] O que nos dá mais prazer na vida? […] parece-me que são sempre os momentos tranquilos que preenchem o cotidiano.”

Para ela, esses momentos eram os de inventar histórias, ouvir as leituras em voz alta de sua mãe, brincar de casinha e com os animais, viver em família. Nada indicava que se tornaria uma autora. Seria tão mais interessante, Agatha reflete, se pudesse “afirmar que sempre quis ser escritora” e que estava “determinada a ser bem-sucedida um dia”, mas isso jamais lhe passou pela cabeça. Até que aconteceu.

Acho essa dissociação boa para pensar. Agatha foi vivendo um dia de cada vez, sentindo-se como alguém que não se “destacava em nada”. Tentou guiar seus talentos para a música e para o canto, mas o que prevaleceu (e rendeu) foi sua capacidade de criar personagens e contar histórias, algo que desde muito cedo fazia parte da sua personalidade.

Penso que muitos de nós temos consciência desses amores infantis; daquilo que nos emociona desde muito cedo. Hoje, escrevendo esse blog, vejo o quanto ele reflete meu amor pelos livros ilustrados. Nunca imaginei que esse gosto iria me trazer até aqui e que um dia eu fosse ousar sonhar com uma vida de escrita e ilustração.

E vocês? Quais são os seus amores de infância? Eles estão esquecidos ou guiando suas ações em alguma direção?

Esse post continua na próxima semana!

Sobre o livro: Autobiografia, Agatha Christie. Porto Alegre, L&PM, 2015. (Tradução de Bruno Alexander). Comprei na Estante virtual! A ideia de ler esse livro veio de uma citação no Facebook do mural do poeta Carlito Azevedo. Infelizmente, não consegui localizar novamente. Só me lembro que gostei!

Sobre o desenho: Imagem feita a partir da fotografia da capa do livro (créditos Getty Images). Utilizei o mesmo processo descrito aqui para traçar um esboço a lápis. Depois fiz as linhas com diversas canetinhas de nanquim descartável Pigma Micron (0,4, 0,1 e 0,05). Colori com marcadores cinzas Tombow, num papel 180gr, bem ruinzinho, da marca Spiral (desses blocos de desenho baratos que vendem em qualquer papelaria). Infelizmente não consegui dar ao rosto dela a expressão marota da fotografia original. Ficou tudo meio pesado, mas o post tem que sair; então vai de qualquer jeito!

Você acabou de ler “Lições de escrita com Agatha Christie (Parte 1)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2017. “Lições de escrita com Agatha Christie (Parte 1)”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: http://wp.me/s42zgF-agatha1. Acesso em [dd/mm/aaaa].