Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Respirar, escrever, pontuar. E feliz dez anos do blog!

Já nas alturas, pára e respira. Quão difícil é subir a um monte. Que difícil é a busca de um espaço. Que difícil é a busca de si própria. Chamou a si todas as forças e continuou a subir.” (Paulina Chiziane, O alegre canto da perdiz, p. 211)

A maior dificuldade de escrita dos estudantes é com a pontuação. Não sei se sempre foi assim. Será que é mais um dos sintomas de pandemia prolongada. O ar nos faltou tanto que temos dificuldade de parar para respirar de novo.

Vou dar um exemplo. Pedi para os alunos descreverem acontecimentos do seu cotidiano. No trecho abaixo, demonstro os sinais da enfermidade (com redação fictícia):

“A consulta médica foi como esperado, conversamos sobre os sintomas e houve uma espera menor do que da outra vez e aí minha mãe chegou após o trabalho, e tivemos que ir ao ponto de ônibus mas não estava tão quente e foi agradável segurar sua mão e sentir seu apoio.”

Dá para entender? Dá. Mas pobres leitores! O problema é que 90% dos estudantes escrevem assim. Não é falta de conteúdo, na minha opinião. É falta de ar, de pausa, de respiração. Também não é pouca leitura. Eles lêem muito, mas lêem correndo, como escrevem. Tudo é com pressa, como os vídeos do Tik Tok.

Não tenho esse aplicativo, mas há uma tiktokização das outras redes sociais: o reels do Instagram, os shorts do YouTube. Eu tinha jurado que nunca veria um “shorts”. E ontem fiquei hipnotizada por uma hora nessa armadilha.

Costumo pesquisar dúvidas no YouTube, conforme aprendi com meus filhos. O microondas aqui de casa está sempre com a hora certa por isso. Agora até o YT responde com mini-vídeos. E depois que você vê o primeiro não consegue mais parar. É como um grande parágrafo sem ponto.

Não adianta chamar um teórico da literatura para dizer que é “fluxo da consciência”, porque você não pensou nada daquilo. O algoritmo pensou por você e te tragou para dentro dele. Aconteceu comigo ontem. Não sei o que fiz entre as 22 e as 23 horas.

Acordei de ressaca, ansiosa por um antídoto. Revi leituras das últimas semanas. E cheguei às palavras de Paulina Chiziane que abrem esse post: que difícil é viver, lutar, cansar, parar e mesmo assim continuar. Sento para escrever. Criar é uma cura.

Respiremos!

Dez anos de blog — Obrigada!

No dia 6/11/2023 foi aniversário de 10 anos deste blog! ♥️ Obrigada por estarem aqui, pela companhia desde 2013, pelas dezenas de conversas e calmaria. Agradeço o carinho! Eu tinha me programado para escrever um post bem especial sobre concursos em comemoração, mas meu gatinho Charlie ficou doente. Ele já está bem. Em breve o post sai. Será uma parceria com a Manó (@itsme_mano) surgida no nosso grupo no Telegram, Abraço acadêmico.

Que nosso sonho de uma vida acadêmica mais cooperativa e solidária continue gerando frutos! Obrigada por tudo 💌

Projeto “Como escrever um texto em 8 meses” (Semana 4/36) — Desde o último post, escrevi zero palavras! Hahaha. Foi produção de feriados, gatinho doente, leituras de romances e sequestro de mini-vídeos. Ah, tenho a desculpa de que Alice fez Enem! Serve? Não, né? Foi ela quem fez as provas. Minha curva de produtividade só não está pior porque eu pensei. Sim, gente, pensar cansa e dá trabalho. Requer respiração e amadurecimento. Consegui decidir o tema do que pretendo escrever. Já contei para vocês que este será o texto da minha promoção para professora titular? Eu estava com receio de me expor. Mas decidi que não faz sentido fazer um diário de escrita sem explicar o que me espera no final do projeto. Ano que vem completo o tempo de docência necessário para concorrer ao cargo na UFRJ. Preciso escrever um memorial e uma conferência. O primeiro não me preocupa (sou uma otimista para textos pessoais). Já a segunda tem que ser algo publicável. Como diria o Juva, tem que ter brios. Vamos a isto.

Sobre a citação de Paulina Chiziane: Trecho da página 211 (versão eletrônica) do romance “O alegre canto da perdiz”, de Paulina Chiziane (edição Caminho, Portugal, 2008). É o segundo livro dessa autora maravilhosa que conheci por indicação da querida Sarah Toledo, do Sarices. O blog dela está em pausa, mas tem posts maravilhosos sobre literatura lá. E a Sarah também é professora de espanhol. Da Paulina Chiziane, li também o Niketche. São excelentes e muito diferentes um do outro. Adorei ambos, mas acho que prefiro o estilo mais realista e engraçado de Niketche.

Sobre o desenho: Caixinha usada de lenços Kleenex feita com canetinha 0.05 (bem gasta) da Pigma Micron. Trouxe a imagem da página inteira (acima) porque esse desenho foi feito em um bloco Canson A5, papel branco 90gr, que não se encontra mais pra comprar. As cores foram feitas com lápis de cor. Adoro desenhar objetos do cotidiano e perceber seus detalhes. Vocês já tinham lido a legenda “dia a dia” abaixo da marca? Enquanto desenhava, escrevi algumas notinhas sobre o Juva em janeiro de 2022. Foi muito triste de reler, mas a Paulina Chiziane me socorreu:

“Amar é também abrir a mão e deixar partir. Amar é ganhar e perder. É aceitar semear-se para germinar noutra encarnação.” (Paulina Chiziane, O alegre canto da perdiz, p. 77)

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Respirar, escrever, pontuar. E feliz dez anos do blog!”, Publicado em karinakuschnir.com, url: https://wp.me/p42zgF-41P. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Seis dicas para ouvir e transcrever textos falados — ou como depender menos dos olhos na vida acadêmica

Óculos de brinde para ler muito de perto (aquarela @kk)

“…os meros fatos oculares podem ser enganosos. Feche os olhos, meu amigo, em vez de arregalá-los. Utilize os olhos do cérebro, não do corpo. …o senhor faz deduções a partir de coisas que viu. Nada pode ser tão ilusório quanto a observação.” (Poirot, em Morte nas nuvens, Agatha Christie)

Taí um livrinho antigo que valeu demais reler, ou melhor, ouvir! Depois de duas cirurgias e sete encrencas nos olhos em 2023, aprendi a utilizar vários aplicativos e sites para driblar esse mundo retinocêntrico da vida acadêmica. Compartilho com vocês, contando um pouco do que me aconteceu.

Precisei fazer uma cirurgia de retina de emergência em abril, com direito a gás e cinta de silicone no olho esquerdo. Foram 45 dias de bruços para a recuperação. Sim, vocês leram certo. De bruços.

1. Natural Reader – https://www.naturalreaders.com/online/ – De longe a melhor descoberta de 2023! É um aplicativo, site e extensão para o Chrome que lê textos da internet ou de arquivos doc, pdf e epub. Tem versão gratuita ou paga. A diferença é na qualidade das vozes. Todas são boas, só que as plus ou premium soam mais naturais. Fiz uma assinatura, mas Antônio usa e adora a versão gratuita. Tem vozes em 20 línguas, com recurso de highlight, anotação, pronúncia, pular cabeçalho, ajustar velocidade, marcar página e tornar fotos legíveis.

O NR é o app mais utilizado do meu celular. Já ouvi milhares de textos com ele: relatórios, projetos, teses, artigos e meus amados livros inteiros. Já passam de cem em seis meses. Ouvi desde Agatha Christie e auto-ajuda até obras de Maya Angelou, Beatriz Nascimento, Yaa Gyasi, Zora Hurston, Franz Fanon, Grada Kilomba, Edward Said, Virginia Woolf, Carolina de Jesus e Saidiya Hartman. Escutei autores antigos e colegas com livros no prelo, artigos ou dissertações.

No início, achei que o NR viria apenas me socorrer em um momento difícil. Meses depois, não consigo me imaginar vivendo sem a voz literária que ele me traz. Nem tudo ouço em qualquer lugar. Uma reflexão densa como a de “Silenciando o passado”, de Michel-Rolph Trouillot, precisa de concentração. Já o manual de anti-autoajuda “Quatro mil semanas”, de Oliver Burkeman, posso ouvir limpando a caixa dos gatos, lavando louça ou esperando o metrô. Já autoras como Angelou, Nascimento e Kilomba escrevem tão bem que tornam qualquer situação especial.

Uma utilidade bem-vinda do NR é reavivar a memória de textos já lidos. Revisar os materiais de aula deixa de ser entediante. É assim que estou relendo Truques da Escrita e os artigos indicados nas disciplinas do semestre. Recorro ao app também para ler rapidamente textos de estudantes e fazer a última revisão nos meus próprios escritos. O som ajuda a detectar na hora errinhos de digitação ou repetição de palavras, por exemplo.

Paninho da ótica Vista Nova (aquarela @kk)

2. Outras formas de ouvir textos – As ferramentas de leitura de texto em voz alta estão em vários softwares, sites e gadgets. Por meio do menu “Acessibilidade”, o Google (Google Docs e família) lê textos no celular e no Chrome. O problema é configurar as muitas etapas e ainda separar a informação a ser lida. O Word (seção Revisão, opção “Ler em voz alta”) tem boas vozes e uma leitura agradável, mas converter tudo em .docx não seria prático nem viável! O mesmo com todos os apps da Adobe (a empresa mais chata do mundo). Alguns modelos de Kindle lêem os textos, assim como apps do sistema iOS. A plataforma Substack e jornais como New York Times têm opção de play. Há os audiolivros — gratuitos e ruins, ou caros e chatos, hahaha. Há outras extensões de leitura para navegadores, como Read Aloud. Testei várias e, na minha experiência, nenhuma é tão boa, simples e eficiente como a Natural Reader.

3. Transcrição de textos com Telegram – Basta mandar um audio para o usuário @transcriber.bot do Telegram que seu texto será transcrito. É gratuita e ainda faz pontuação sem você ter que ditar “ponto” e “vírgula”. Ao contrário dos microfones do Google, a transcrição do Telegram têm uma excelente formatação no português. Na versão grátis, minha experiência é de bons resultados com audios de até 20 minutos. Em alguns horários pode falhar, mas é só enviar novamente. Na versão Premium (paga) do aplicativo, há uma opção de transcrever ao lado de todos os áudios. Testei por um mês; é ótima e estável. (Aprendi essa dica com a Hannah. Obrigada, flor!)

4. Transcrição de textos com Transkriptor – https://app.transkriptor.com/signIn – Esse é um serviço online de gravação e transcrição de áudio profissional. Há amostras grátis e assinaturas de várias quantidades de tempo (a minha é a básica, de 300 minutos por mês). Eu nem precisava assinar, mas não resisti, tamanha a minha felicidade em ver a qualidade do texto. Pensei nas centenas de horas que gastei com transcrição das minhas entrevistas etnográficas; e as outras dezenas de gravações de diários de campo que me causaram tendinite no doutorado.

Para mim, o melhor uso desse tipo de serviço é poder transcrever os áudios de trabalho. Desde que comecei meus problemas oculares, passei a fazer a primeira versão dos meus textos gravando ideias no Whatsapp ou direto no app do celular. Também já fiz sessões de orientação gravadas com alunos. Depois, é só mandar transcrever tudo e, como num passe de mágica, temos 8, 10, até 15 páginas de rascunho digitadas. Economiza tempo, energia e muitas tensões corporais! (Agradeço essa dica à querida Marize, amiga do grupo de apoio que mantenho no Telegram chamado Abraço Acadêmico. É só nos procurar lá ou clicar aqui.)

5. Transcrição de textos em outros apps – Teclado do Google (celular), Google docs (no celular ou navegador), Word (opção “ditado do Office”) e vários outros softwares e aplicativos transcrevem textos falados. O problema deles, na minha opinião, é a má qualidade da pontuação e a pouca praticidade. Talvez o menos piorzinho seja o do teclado do Google. Nos telefones Samsung, ir nas configurações, procurar “teclado padrão” e mudar para “Gboard” (pois é, nomezinho ridículo). Nos outros celulares deve ter um caminho parecido. Acho que vale para textos rápidos, mas não supera o serviço gravação-transcrição.

Journalist Studio, da Google – https://journaliststudio.google.com/pinpoint/collections – Esse seviço também promete transcrever audios e muitas outras habilidades. Foi dica de uma aluna que ainda não testei.

6. Dica bônus – traduzindo PDFs inteiros – Sabe aquele PDF interessante que veio em uma língua que você não sabe ou está com preguiça de ler? Então, agora o Google Tradutor permite que a gente envie um documento inteiro e o receba de volta em português. Eles colocaram novas abas: “Imagens”, “Documentos” e “Sites” na página inicial https://translate.google.com.br/?hl=pt-BR. Basta arrastar ou fazer o upload do arquivo para ter o conteúdo traduzido na língua que quiser. Estou começando a usar e achando promissor. Já penso nos artigos a traduzir para as disciplinas da graduação sem gerar sofrimento.

É isso, pessoal. Um viva aos sons! Boas gravações e audições para vocês. Depois me contem o que acharam. ♥

Projeto “Como escrever um texto em 8 meses” — Desde o último post, escrevi 1368 palavras. Piorei em relação à média anterior. Meu maior feito foi abrir um arquivo de 900 páginas e conseguir ler as primeiras 100 (no NR, claro). Preciso reservar um dia na semana para esse projeto.

Sobre a citação de Agatha Christie: Frases de Poirot na página 77 do romance “Morte nas nuvens”, de Agatha Christie (edição da L&PM Pocket, tradução de Henrique Guerra.)

Sobre os desenhos: Linhas com canetinhas Pigma Micron de várias espessuras no caderninho Laloran. Cores feitas com aquarelas, lápis de cor e um pouquinho de guache. Ganhei os óculos vermelhos de brinde da ótica Vista Nova, no Jardim Botânico (Rio de Janeiro). Conseguir uma receita correta e lentes funcionais para os meus olhos pós-cirurgia foi uma saga de quatro meses. Minha primeira aquarela pós-alta foi justamente a que abre esse post, seguida da outra, com o lencinho da ótica. Achei significativo desenhar os objetos que foram me trazendo de volta ao mundo dos videntes.

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Seis dicas para ouvir e transcrever textos falados — ou como depender menos dos olhos na vida acadêmica“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-41A. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)

Vamos à Parte 2 da aula lúdica que fiz para a disciplina de Laboratório de escrita. Materiais e dinâmicas propostas estão na Parte 1, assim como a análise das duas primeiras perguntas.

Aqui chegamos ao que mais me interessava: como os estudantes se sentem em relação à escrita e à leitura na faculdade de Ciências Sociais? (As respostas são anônimas.)

Pergunta Verde — Como foi sua experiência de escrita mais positiva durante a faculdade? E a mais negativa?

No lado positivo, salta aos olhos que os alunos amam escrever sobre temas que lhes interessam. O mesmo ocorre quando conseguem vencer desafios, tipo “escrever um texto de 10 páginas”, ou conectar autores como “Freud e Lélia Gonzalez”. É desses trabalhos de vulto que eles se orgulham, e ainda mais se tiverem um retorno positivo por parte dos professores. Outra alegria é quando descobrem fontes e métodos, como pesquisar na hemeroteca da Biblioteca Nacional pela primeira vez.

Em relação às experiências negativas, a turma se dividiu entre três queixas principais: a) dificuldade com prazos (a maioria!); b) desgosto com autores e temáticas; c) rejeição a formas acadêmicas, como provas, resumos, formatações complicadas, trabalhos em grupo. Confesso que me surpreendeu ler apenas duas respostas sobre desafios emocionais (depressão e insegurança). Talvez esse tema tenha sido encoberto pelo problema dos “prazos”, com frequência ligado à ansiedade e outros sentimentos difíceis.

Ou seja, profs queridas, para estimular escritas, precisamos dar espaço para eles explorarem escolhas e fontes, mas lembrando de desafiá-los com propostas ambiciosas. Para dar certo, isso tem que vir embalado com cronograma e apoio para redigirem em etapas, sem deixar tudo para o último dia.

Resumindo, é o básico que a gente também precisa, né? Eu pelo menos queria uma prof assim! 😉

Pergunta Laranja — Fã ou Hater — Qual a sua experiência de leitura mais positiva durante a faculdade? (De quais autores você é fã e por que?) E a mais negativa? (De quais autores você é “hater” e por que?)

Essa pergunta trouxe uma contra-estatística maravilhosa do mundinho “das humanas”. As autoras mais amadas são mulheres negras: Lélia Gonzalez, Bell Hooks, Conceição Evaristo, Patrícia Hill Collins, Grada Kilomba, Sueli Carneiro. (Já os mais citados homens foram Paulo Freire e Franz Fanon). Dá para sentir o motivo… As escritas preferidas têm “sensibilidade” para tratar de “problemas do cotidiano”, geram “identificação”, trazem “vivências” próximas e “representatividade”. Como escreveu uma aluna: “lendo Conceição Evaristo me sinto ouvida, contada, vista”.

Em termos de forma, os estudantes preferem “textos simples que conseguem tratar de problemas complexos”, como concluiu o time Laranja. Querem escrita fluida clara, leve, vívida, original, compreensível, coesa, direta, sistematizada, de fácil entendimento, “sem perder a profundidade teórica”.

Falando assim parece tão simples. Só que não é! Haja revisão.

E chegamos aos “haters”. Pierre Bourdieu ganhou de lavada a corrida dos mais detestados, ainda que tenha tido um fã. Foi seguido por outros como Hegel, Durkheim e Gilberto Freyre — este associado ao racismo.

A turma foi direta na descrição do que desgosta: autores pedantes que escrevem textos pretenciosos, rebuscados, enigmáticos, enrolados, truncados, pesados, artificiais. São difíceis de entender e, por isso, dificultam a concentração na leitura. Além do racismo, a literatura acadêmica foi relacionada ao “academicismo”, “descritivismo” e “formalismo”. Um estudante resumiu bem: não gosta de textos que ficam “dando voltas e não dizem o que querem dizer”. Errado não está, né?

Confesso que até tentei defender Bourdieu, mas lembrei da época dos meus estudos para o mestrado em que chamei um amigo francófilo para me ajudar a lê-lo. Era um artigo publicado no auge da sua fase rebuscada. Meu professor olhou praquilo e disse: “isso não está em francês não!” Se ele que dominava a língua não estava entendendo nada, que chance eu teria? Deixei pra lá e rezei. (Deu certo.) Anos depois descobri que havia outros “bourdieus” e, embora não seja fã, consegui entender suas ideias.

Voltando ao assunto: concordo com tudo que a turma diagnosticou! Por isso nossos livros-chave para o Laboratório de redação são “Truques da escrita” de Howard S. Becker, “Quarto de despejo”, de Carolina de Jesus e “Cartas a uma negra” de Françoise Ega. A explicação para esse trio fica para um próximo post!

Boas aulas, pessoas queridas!

PS: Qual o objetivo disso tudo? Ao longo do semestre, essa aula consolida os critérios dos próprios alunos para revisão dos textos deles mesmos. Na prática, eles se dão conta de que precisam revisar muito para atingir os seus ideais de escrever bem.

Projeto “Como escrever um texto em 8 meses” — Conforme prometi no Instagram, vou escrever sobre o processo de produzir um texto acadêmico que preciso entregar daqui a 8 meses. Tem que ser algo inédito e decente. Começo esse diário de escrita com meu problema inaugural: sobre o quê devo escrever? Sou eu que decido o tema. Já consultei filhos, colegas, estantes e ainda não sei. Resolvi seguir a máxima que o Ju tanto gostava: escrever para saber o que eu gostaria de escrever se estivesse escrevendo! (Foi mais ou menos o que disse Marguerite Duras, H. Becker, Anne Lamott e um monte de gente que escreve sobre escrita.) Vou tentar seguir a ideia de escrever 300 palavras por dia, conforme disse que fazia no post Escrita Diária. (Às vezes me pergunto quem era essa Karina de 2017?) Prometo que volto semana que vem para contar.

Sobre a proposta das aulas lúdicas: Esse post é continuação da Parte 1. Mais ideias de aulas lúdicas aqui.

Sobre a ilustração: Apenas inverti a ilustração do post Parte 1 (a explicação está lá). Aproveito para contar que era assim que Leonardo Da Vinci (1452-1519) escrevia em seus cadernos. Os alunos acharam que eu estava brincando, mas é verdade, como explica esse simpático blog.

Você acabou de ler “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-40VAcesso em [dd/mm/aaaa].


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Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)

Para animar, resolvi adaptar uma antiga aula lúdica para começar bem o semestre com minha turma de Laboratório de redação. Como na aula “brincando de pesquisar”, o objetivo era conhecer os alunos. Dessa vez, porém, foquei nas suas experiências com leituras e escritas, antes e depois da faculdade.

Material necessário: Algumas folhas coloridas em quatro cores diferentes. Comprei um pacotinho de A4 na loja Caçula da Rua Buenos Aires, perto do IFCS. Algo parecido com esse aqui.

Dinâmica: Como foi feita a aula:

Avisos — As respostas são anônimas; não é para nota; não tem certo ou errado; conta como participação. Pedir que tentem ser bem específicos nas respostas.

Preparação — Pedir para alguns alunos ajudarem a cortar o papel A4 papel em 8 pedaços, até que todos da turma tenham um pedaço de papel de cada cor.

Quadro — Escrever as cores e as perguntas no quadro (ver abaixo).

Alunos — Pedi que os alunos respondessem nos pedaços de papel colorido. Cada papel recebe duas respostas: positivas + e negativas -. Alguns alunos responderam no mesmo lado; outros escreveram mais e utilizaram frente e verso. Não importa. Não é necessário copiar as perguntas.

Amarelo — Qual é a sua lembrança de escrita mais positiva antes de entrar na faculdade? E a mais negativa?

Rosa — Qual é a sua memória de leitura mais positiva antes de entrar na faculdade? E a mais negativa?

Verde — Como foi sua experiência de escrita mais positiva durante a faculdade? E a mais negativa?

Laranja — Qual a sua experiência de leitura mais positiva durante a faculdade? (De quais autores você é fã e por que?) E a mais negativa? (De quais autores você é “hater” e por que?)

Pote para depositar a resposta — Por conta de outras dinâmicas, tenho uma caixa preta com um buraco no meio que utilizei para ir coletando os papéis com as respostas.

Organização por cores e grupos —Todas as respostas coletadas foram misturadas na caixa. Em seguida, colocamos o monte de papéis no chão e separamos por cores. Dividimos a turma em quatro grupos e cada um ficou com uma cor. Eles acabaram chamando os grupos de “times”. Ficamos com aproximadamente 8 alunos por time/cor. Nesse momento é importante que eles movimentem as cadeiras para sentarem-se juntos de seus grupos.

Debate intra-grupos — Cada grupo leu todos os papéis da sua cor e fez uma análise qualitativa das respostas positivas e negativas. Depois, cada aluno do grupo escolheu uma resposta significativa da sua cor para ler em voz alta.

Exposição e debate com a turma — Organizamos as cadeiras em círculo para que a turma toda pudesse se escutar, mantendo os integrantes de cada time próximos uns dos outros. O resultado da análise de cada cor foi apresentado para a turma por um aluno escolhido pelo grupo, sendo essa explicação depois embasada com as leituras das respostas escolhidas para serem lidas. Seguimos a ordem dos grupos acima: amarelo, rosa, verde e laranja.

Análise das respostas

Time Amarelo — Minha lembrança mais positiva de escrita foi… Exemplos: “quando escrevi meu nome pela primeira vez na escola”; “quando escrevi meu nome ensinada por minha irmã”; “quando fiquei entre os melhores em um concurso de redação”; “quando escrevia crônicas em um projeto extracurricular”; “quando fiquei fascinada pela caligrafia da professora”; “minha primeira carta ao Papai Noel”; “quando aprendi inglês com minha mãe”; “quando escrevi meu primeiro poema de amor”; “quando escrevia cartas para meus primos”; “quando me sentia livre para escrever em meu diário”; e “quando utilizava materiais novos comprados pela minha mãe”… A mais engraçada foi “a primeira palavra que escrevi foi OVO”. 😀 Uma resposta comovente dizia que “na turma de alfabetização, quando todos liam as sílabas em conjunto, sentia um sentimento de comunhão”.

Foi emocionante ter acesso às memórias afetivas relacionadas a escrever, revitalizando a ideia de que essa já foi uma prática prazerosa para eles.

Se as lembranças positivas são diversas e específicas, as negativas relacionam-se a experiências de avaliações ruins. Ser julgado traz medo e insegurança: notas baixas ou “vermelhas”, letras “feias”, erros bobos, falhas de ortografia, comparação com colegas, desespero na redação do Enem, pressão dos pais.

Time Rosa — As memórias de leituras positivas antes de entrar na faculdade trouxeram autores como Machado de Assis, Drummond, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Carolina de Jesus, Fernando Pessoa, Victor Hugo, Salinger, Saramago… Os alunos mencionaram romances, suspenses, biografias, clássicos, escritas feministas ou Lgbt, quadrinhos, ficção mágica, não-ficcção histórica, poesia. A resposta mais aplaudida foi: “Ler meu nome na lista de aprovados de um exame”. E uma das mais tocantes foi a da estudante que lembrou do pai lhe ensinando o poema “E agora José?” de Carlos Drummond de Andrade.

As leituras mais lembradas como negativas eram livros específicos (tipo, não gostei de “O mago”) e aquelas feitas por obrigação, como manuais, livros famosos (tipo “O pequeno príncipe”) ou clássicos indicados pela escola. Foi interessante um estudante que mencionou ter odiado Machado de Assis no ensino fundamental e, do outro lado do papel, escrever que depois este se tornou seu escritor preferido. Como na pergunta anterior, aqui também apareceu o trauma gerado por métodos de disciplina rígidos e ríspidos.

(Tá muito grande, então, continua na Parte 2! Spoiler: a análise do time laranja foi a mais importante, por isso o post se chama Fã ou Hater)

Sobre a proposta das aulas lúdicas: Dizem por aí que toda antropóloga é uma fofoqueira profissional. Assumo o título! Já escrevi que virei fotógrafa, jornalista, pesquisadora, professora e desenhista porque gosto de gente. Amo detalhes, nomes, histórias, gostos e desgostos. Além do mais, como professora, tenho um semestre pela frente, com o desafio de sair viva no final. Espero contagiar meus alunos nessa disciplina, já que são eles os professores do futuro. Mais ideias de aulas lúdicas aqui.

Sobre a ilustração: Fotografei quatro pedacinhos do exercício com o celular e editei no Photoshop para ficar neste formato. O scanner não conseguiu pegar as cores fosforecentes dos papéis. Então utilizei o app CamScanner para capturar as imagens. Dá para utilizar na versão gratuita e é útil para transformar qualquer pedaço de papel em documento legível. Inclusive transforma foto em texto.

Você acabou de ler “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-40h. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Quinze dicas para ajudar a ler textos acadêmicos (ou não)

“Quando meu filho estava com oito meses, podia-se dizer de verdade que ele devorava literatura. Se alguém lhe dava um livro, mastigava-o.” (Anne Fadiman)

Quem se identifica com a ideia de “devorar” livros levanta a mão! Para mim, faz todo sentido. Quando uma obra me conquista, sinto que entro num espaço de prazer, como se estivesse comendo as páginas, de tão boas. Só que nem sempre é assim…

Um dos maiores desafios da vida acadêmica é a quantidade de leituras de que precisamos dar conta. Gostaríamos de ler mais do conseguimos e, pior, nem sempre podemos decidir o que vamos ler. Faz parte: alunos têm que passar pelas bibliografias que os professores selecionam; docentes precisam encarar leituras essenciais para suas pesquisas e ainda monografias, teses, dissertações e trabalhos de curso.

Como dar conta de ler tudo? Listo abaixo algumas dicas a partir da minha experiência e das dificuldades pelas quais passei. Foi mais ou menos isso que aprendi:

1) Prazer de ler – Para saber se estou na área de pesquisa certa, sempre me pergunto: “sinto prazer de ler os textos que estou lendo?” Muitos alunos me escrevem em dúvida sobre qual caminho ou tema seguir. Minha primeira sugestão é se questionar: sobre o quê você realmente gosta de ler? Porque, uma vez escolhida a área, haverá uma montanha de textos para dar conta. Foi assim que descobri meu amor pela antropologia, depois de passar por design, publicidade e jornalismo: quando me deparei com textos como o “Pessoa, tempo e conduta em Bali”, de Clifford Geertz, percebi que queria mais!

Só que dentro de uma área existem centenas de recortes possíveis. Inclusive, isso me lembra um episódio vergonhoso da minha vida acadêmica, quando fiz uma pesquisa numa universidade no exterior. Apesar de toda a alegria de ter recebido o auxílio para esse trabalho, passei boa parte do meu tempo lendo livros e fuçando bibliotecas sobre outro assunto. Pois é. Isso foi há muitos anos! Já fiz relatório, publiquei, prestei contas, tudo certinho. Só que até hoje me sinto culpada por ter me dedicado menos do que deveria às leituras apropriadas. Demorei a perceber que aquela “fuga” era um sinal de que estava na hora de mudar. (Voltarei a esse tema adiante.)

2) Organização do calendário – Ao começar um semestre, pego um calendário dos próximos meses e assinalo todos os compromissos, como aulas, defesas, bancas, congressos etc. Pesquiso e marco os feriados. Feito isso, tento calcular qual será o volume de leitura de cada etapa (por semana). Se eu tiver períodos de sobrecarga ou de eventos, tento compensar programando menos textos nas aulas da época.

Sei que é difícil prever tudo isso, mas essa lista é para lembrar de tentar. Ao aceitar participar de uma banca, por exemplo, tento aliviar a carga de leitura daquela semana. Ah, Karina, isso não existe… Gente, não é porque não existe que não devemos querer que passe a existir. Já vi várias vezes colegas chegarem em bancas sem terem lido direito o material do candidato; e eu mesma já cheguei numa aula sem me sentir preparada. Então vale estarmos atentas: somos humanas e nossa capacidade de leitura é finita!

3) Calcule sua capacidade de leitura por número de páginas – Uma das dicas mais importantes é aprender quanto tempo levamos numa leitura. Aprendi fazendo assim: ao começar um texto, anotava o horário de início no alto da página. Seguia lendo até a primeira interrupção, quando escrevia novamente o horário da pausa, mesmo que fosse para ir ao banheiro ou buscar um copo d’água. Fui fazendo isso em vários os textos até chegar numa média de velocidade para cada tipo de texto. Por exemplo: leituras em português ou em língua estrangeira; não-ficção ou ficção; texto obrigatório x texto complementar; texto em PDF x texto em papel; livros x artigos; leituras x releituras; trabalhos de alunos, dissertações ou teses. Cada material desses traz pequenas alterações no nosso rendimento. Eu não medi todos eles (não sou tão obsessiva assim!) A ideia é chegar numa média, numa medida realista da nossa velocidade. Por exemplo, no meu caso, costumo ler de 20 a 30 páginas por hora. (Pode ser menos ou mais a depender dos fatores envolvidos, como explico abaixo.)

4) Calcule sua capacidade conforme o objetivo da leitura – Outra dica importante é entender quanto tempo você leva para ler um texto sobre o qual deverá falar, apresentar seminário ou dar uma aula sobre. Nesses casos, eu, pelo menos, preciso sublinhar, anotar e, se possível, fazer um fichamento. Então não adianta utilizar as medidas de leitura do item 3. Eu sei, a gente insiste em achar que vai dar, mas não dá. E dá-lhe virar noite ou chegar na aula insegura porque não fez o trabalho direito. Melhor fazer um planejamento pragmático. Para citar o meu caso, fui preparar uma aula sobre um texto de apenas 22 páginas (que já tinha lido antes): levei 1 hora e meia entre reler e fichar os principais pontos para falar.

5) Calcule sua capacidade de leitura conforme o período do dia ou da semana – Nossos corpos têm ritmos distintos e níveis de concentração muito variáveis. Sou do tipo que prefere varar a madrugada. Nunca entendi quem dorme cedo e coloca o despertador para as 5 da manhã para terminar de preparar ou ler algo! Simplesmente não funciono nesse horário, mas tem gente que sim. Outra coisa muito idiossincrática minha: às vezes prefiro acumular um volume maior de leituras para sábado e domingo, do que ler um pouquinho todos os dias (principalmente trabalhos monográficos). Depende de cada um encontrar o seu jeito; e não tem jeito certo, desde que você termine a tarefa a tempo sem se esgotar.

Depois de medir uma participação em banca de doutorado (tese grande), cheguei à conclusão de que gastei quase 6 dias inteiros de trabalho, entre leitura, preparação da arguição e a defesa em si. Sim, seis dias rolando com a tese e as demais tarefas de dona-de-casa, mãe e professora. É muito! Então, toda vez que me convidam para uma banca, já tenho uma noção bem realista do tempo que vai me tomar. (Quando o trabalho é bom, tudo ótimo, aprendemos bastante… Mas quando é ruim, que sofrimento. No fundo, a grande medida para tudo isso é a qualidade do texto. )

6) Não dá para ler tudo – A vida é feita de escolhas, né? Essa é bem clichê mas a gente insiste tanto nesse erro que vale apontar: não dá para ler 1500 páginas por semana! E digo isso para alunos, que se sentem culpados porque não deram conta; e repito para os professores que (ainda) fazem seus programas de curso como se esquecessem que os alunos têm outros cursos para atender. Para ler 1500 páginas por semana, a pessoa teria que ler 11 horas por dia, de segunda a domingo (média de 20 páginas/hora). Quem tem condições de fazer isso? Eu até posso ler (e leio) um romance de 900 páginas numa semana livre. Mas isso se for uma boa ficção e eu estiver de férias! (Mesmo assim, varia. Por exemplo, li em seis dias Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves; mas levei várias semanas para ler Middlemarch, da George Eliot. Ambos são imensos e adoráveis, mas são narrativas com ritmos diferentes.)

Sim, sei que alguns alunos ainda precisam aprender a se concentrar e a priorizar a tarefa da leitura. Ler para uma aula é parte do trabalho de ser estudante. Não desanimem, tá? A velocidade melhora com a prática e conforme vamos nos familiarizando com a linguagem acadêmica e com o vocabulário conceitual da área em que estamos inseridos. E às vezes o problema não é seu: é que o texto é ruim mesmo! Saber identificar essa diferença é um aprendizado. Tenham paciência.

Pelo lado dos professores, porém, vejo que alguns programam textos demais por aula. Isso pode ter motivos válidos, como apresentar um curso bem completo com o “estado da arte” de um tema. Mesmo nesses casos, o docente, na minha opinião, deveria calcular uma quantidade de texto obrigatória razoável: em torno de 100 páginas por semana numa pós-graduação que exige que o estudante faça três ou até quatro disciplinas por semestre. O restante pode ser indicado como leitura complementar. Alguns professores esquecem que eles leram aqueles textos ao longo de muitos anos, e não em poucos dias, como estão exigindo dos alunos. E tem os que montam programas imensos por vaidade mesmo. Sem comentários…

7) Tenha um kit de leitura (acessórios, bebidas e comidas) – Sou dessas que não consegue ler sem óculos e uma lapiseira na mão. Esse é meu kit-mínimo. Não importa se estou lendo romance, livro acadêmico, artigo, até PDF: preciso sublinhar, marcar, anotar. Minha companheira preferida é uma lapiseira Pentel 0.7, com grafite pelo menos 2B — se tiver 3B, melhor. Passei a comprar cor-de-rosa-choque porque as crianças não gostavam. Mas isso é passado. Hoje a Alice tem uma igualzinha e Antônio já me roubou várias. A solução foi enrolar washi tape para marcar a minha. 😉

Tenho um pequeno sistema de códigos pessoal de anotação, com carinhas (sorrindo, chorando, com raiva e de boca aberta), coração, pontos de exclamação e um sinal para quando encontro erros tipográficos. Sempre acho que vou escrever para a editora para avisar do erro, mas depois a preguiça me vence. Outra coisa que faço, quando gosto muito de uma frase ou expressão: reescrevo com a minha letra no alto da página, colocando entre aspas, só para destacar bem ou porque pode ser algo para trazer para o blog. Não uso caneta mas adoro rever um livro cheio de anotações. Quando não tem, é porque não gostei ou li correndo.

Além da lapiseira, costumo ter um lápis-borracha e um caderno ou bloquinho de rascunho. Outra coisa que não pode faltar: post-its de vários tipos. Quando já sei que vou dar aula sobre o texto, marco páginas com trechos essenciais para ler com os alunos. Em livros que não posso anotar, colo post-its maiores com anotações sobre os trechos que pretendo utilizar depois. Já tive suportes de leitura, desses que mantém os livros inclinados na mesa, mas o meu preferido quebrou e nunca mais consegui um igual (era cheio de regulagens, super leve, perfeito).

Finalmente, tem a parte sobrevivência para me manter acordada: comes e bebes! Copo d’água, chá, mate, refrigerante, suco, água com gás, vale tudo né? (Quem leu o post sobre meu TCC, sabe que ele foi feito à base de coca-cola diet. Tomei tanto que nunca mais! Café não está na minha lista porque não tomo, me perdoem a falha.) De comidinhas, prefiro todas que sejam pequenas e picadas, para durarem mais: pipoca, frutas cortadas ou uvas, passas, castanhas, biscoitos, chocolate amargo, até semente de abóbora. Serve qualquer coisa que me mantenha mastigando por um tempo, com o cuidado de não ser muito trash para não dar dor de estômago. Uma época, fiquei com mania de comer torrada seca (de pacote) picada em pedacinhos para render mais. Hoje em dia, costumo comer coisas sem glúten e continuo viciada no mate solúvel (sem açúcar); mas também tomo bastante chá, se estiver frio.

8) Prepare e varie seu local de leitura – Esse post começou inspirado no desenho do início: eu lendo no quarto da Alice com meu gato Charlie. É o único cantinho da casa onde tem rede e ainda bate o sol da manhã. Tornou-se um dos meus locais preferidos para leituras longas de trabalho. Na sala tem um cantinho bom perto da janela. Pra mim, o importante é ter boa iluminação, pois não enxergo bem, nem de perto, nem de longe. Por isso, reforcei as luminárias e lâmpadas em todos os cantos da casa onde pude. Meu sonho ainda é melhorar essa parte e, principalmente, no futuro, ter uma varanda.

Fora isso: uma leitura longa pede apoio para os pés, ventilador no calor, cobertor no frio! Se bater o sono, vale sentar numa mesa de trabalho mais formal ou até ler em voz alta. Mesmo mudar de lugar dentro de casa, ou ler num outro local ajuda. No meu prédio tem um espaço que dá para ler no terraço. Não vou sugerir que vocês leiam em cafés e bancos de praça porque não estamos no Instagram, né? Pelo menos no Rio de Janeiro, sei lá, é bem surreal: se for silencioso, é caro; se for barato, é barulhento; se for na rua, é sujo ou num cenário de desespero social. Talvez na praia ou em uma biblioteca dê jeito. Vocês conseguem?

9) Ler em papel ou PDF – Sou totalmente adepta da leitura em papel. Ler em telas é uma tortura, seja pelo cansaço ocular, seja porque não consigo memorizar os conteúdos. Computador, notebook, tablets, Kindle: todos me trazem a mesma dificuldade. Não sinto o texto, não me aproprio das palavras, não rendo.

Só que preciso ler PDFs mesmo assim! Na área acadêmica é praticamente impossível evitar. Quando não tem jeito, utilizo o aplicativo Books do Ipad e uso a canetinha para destacar ou anotar. Se for uma leitura importante, faço um fichamento à parte. Sobre o Kindle, não tenho, mas utilizo o app para Android e Ipad. Além dos preços mais baixos e do acervo de livros gratuitos (domínio público), a grande vantagem é a função de reunir todas as nossas marcações num arquivo à parte. Isso já me salvou para fazer bons resumos e selecionar trechos para artigos.

10) Ler livros, capítulos ou artigos – Assim como prefiro papel, também sou fã de ler livros inteiros ao invés de capítulos ou artigos. Semestre passado inclusive, dei um curso de graduação cuja bibliografia obrigatória era o volume todo do Truques da Escrita, do Howard S. Becker. As demais referências eram complementares. Os alunos adoraram. A maioria me disse que nunca tinha lido um livro acadêmico do início ao fim na faculdade!

Sei que essa não é uma proposta fácil, nem factível em todos os tipos de cursos. Mas reforço a ideia que defendi acima: não é porque uma prática não ocorre que não devemos desejar que passe a ocorrer. Os textos que mais marcaram minha vida foram livros que li integralmente. Foi esse tipo de leitura que me formou e é isso que desejo para minha vida e para a dos meus colegas e alunos.

11) Renove suas leituras com resenhas, entrevistas, ficção etc. – Um truque para entender melhor as ideias de um autor: ler resenhas sobre os seus livros e entrevistas que ele tenha dado em revistas acadêmicas. É impressionante como esses tipos de textos ajudam a encaixar um autor com suas reflexões e conceitos. Autores que escrevem difícil, às vezes têm um jeito de falar bem claro! Da mesma forma, uma boa resenha sobre um livro, pode nos trazer informações fundamentais sobre o contexto da obra, sua inserção numa área de pesquisa e suas principais contribuições teóricas e empíricas. Ler entrevistas e resenhas de forma aleatória é também um jeito divertido de buscar novos temas e abordagens para nossa pesquisa quando estamos enjoados ou empacados.

A leitura de textos de ficção que se aproximem (ou não) do nosso tema (por área geográfica, temática, histórica etc.) pode ser outra forma de sacudir nossas ideias. No caminho acadêmico, cabe ampliar o leque de autores, saindo da lista tradicional da sua disciplina. Tenho feito isso nos últimos anos e as descobertas são muitas. No sentido inverso também: reler clássicos que você leu quando ainda estava imatura traz supresas. Volta e meia me supreendo com releituras de textos que achava datados ou de pequena relevância. Isso ocorre tanto porque não estávamos preparados para entendê-los quanto porque, com o tempo, nossas perguntas e referências mudam.

12) Registre uma lista das suas leituras – Essa é uma dica bem simples: anote tudo que você lê! Não precisa baixar aplicativos sofisticados. Atualmente, utilizo uma planilha simples do Google, com número, ano, mês, autor, título, editora, origem, estrelinhas e um espaço para observações. É uma boa forma de lembrar do que li e do que gostei nos últimos meses e anos. Também é um jeito de registrar os PDFs que acabam perdidos em vários dispositivos diferentes.

Divido a lista por ano e a linha superior é a mais recente. Às vezes deixo em vermelho o que estou lendo (se estou com mais de uma leitura simultânea). Aproveito também para anotar os empréstimos com fundo em amarelo para não deixar de cobrar.

Nas primeiras linhas da minha tabela, deixo em cor cinza os autores e livros que tenho vontade de ler mas ainda não comecei ou não tenho. Alguns ficam morando ali durante anos e acabo apagando. Mas tem horas que essa listinha é um lembrete fundamental do que já tenho ou do que quero comprar.

Nessa planilha, ficam registradas todas as leituras (ficção, não-ficção; acadêmicas etc.). Só não anoto releituras para dar aula, pois são muitas e tornariam a lista super confusa.

13) Leitura dinâmica para situações de emergência – Aprendi essa dica com um professor que admiro muito. Mesmo sendo um gênio, ele teve a generosidade de me dizer que também não dava conta de ler tudo.

A sugestão era mais ou menos assim: “Karina, quando você não tiver mais tempo, pelo menos ‘sinta o cheiro’ do texto.” Fiquei olhando com cara de pastel: “Cheiro? Como assim?” Ele explicou: “Você vai folheando o livro, página por página, lendo os títulos dos capítulos e das seções. Se possível, leia a primeira linha de cada parágrafo. Isso já vai te dar uma ideia do que o autor quis dizer.”

Lógico que não é o ideal e que esse método pode gerar percepções erradas, mas eu estaria mentindo se dissesse que nunca fiz isso. Claro que sim. E também já apelei para aquele velho truque de ler só a introdução e a conclusão. Recomendo? Não. Mas às vezes a vida é assim, e a gente faz o que dá. 😉

14) Crie um grupo de estudos ou tutoria entre colegas – Essa foi sugestão de um amigo-professor que vem se deparando com os “alunos da pandemia”. A vida dos estudantes já era difícil antes da Covid-19, agora então… Muitos chegam na universidade depois desses dois anos de ensino online (seja no Ensino Médio, seja nos primeiros períodos da faculdade) se sentindo sem base para compreender as leituras e as aulas presenciais, mais densas. Uma forma de compensar isso pode ser criar grupos de leitura entre os colegas da própria turma ou com alunos mais experientes que possam atuar como tutores. Embora o exemplo seja entre alunos, eu mesma tive um grupo de leitura com colegas durante a pandemia. Recomendo.

15) Tenha um gato ou um cachorro pra ler contigo – Sei que esse conselho não deveria estar nessa lista, mas eu precisava de quinze itens, né? Cá entre nós, para quem já curte gatinho ou cachorro em casa: tem coisa melhor do que ler com um bichinho no colo? Eles são a melhor companhia do mundo.

E chegamos ao fim dessa listinha! Lembraram de algo que esqueci? Escrevam nos comentários por favor. Sou apaixonada por livros e pelo prazer de ler, a tal ponto que, durante uma boa parte da minha prática artística, eu só desenhava pessoas lendo!

Obrigada pelo mar de mensagens de carinho e apoio que vocês têm me mandado por aqui e pelas redes sociais. Tem dias que sou só lágrimas, melancolia e saudades, mas há outros em que sinto que vou sobreviver. Consegui ler, escrever e desenhar um pouquinho. Já significa muito.

Boas leituras para todos. Que vocês tenham amor, saúde e paciência. Até o próximo post! ♥

Sobre a citação: A epígrafe do post é do livro “Ex-Libris: confissões de uma leitora comum”, da Anne Fadiman. (Tradução de Ricardo Quintana, editora Zahar, 2002). Adoro esse livro. O meu original, todo anotado, se perdeu em algum empréstimo. Há uns anos atrás, acabei comprando outro mas ainda preciso reler para resublinhar tudo de novo. Apesar disso, nunca esqueci a parte em que ela conta sobre a mania do filho de comer os livros! Comia mesmo, principalmente se tivesse desenho de comidas. 😀

Sobre os desenhos: O desenho que abre o post foi feito no meu caderno-diário em tempos bem mais felizes (26/01/2022). Os demais desenhos foram feitos hoje (23/6) para o post, inspirados numa coleção de imagens sobre livros que junto há muitos anos. Alguns fazem referência aos Simpsons, como vocês podem reconhecer; a menina com a pilha de livros é inspirada num desenho do Quentin Blake, que amo. A menina estudando com um gatinho no colo fiz em homenagem a uma conta do Instagram que adoro seguir: @cats.friedaandhenry.

O caderno que utilizo como diário é um A5 espiral da Papel Craft, capa dura com elástico. (O link que coloquei é só um exemplo; a estampa do meu não tem mais.) É meio caro para um caderno, mas ganhei de presente e dura bastante. Tem um bom acabamento, 90 folhas e bom espaçamento entre as linhas. Apesar do papel ser 75g, consigo desenhar com canetinha e a cor não vaza para o outro lado. No dia-a-dia, para listas e organizações, uso um caderninho A5 da Tilibra de 80 folhas que custou R$12,50! Quando quero colocar algum desenho nele, faço num papel à parte e colo na página. Atualmente, o meu tem sido esse aqui:

Para esses desenhos, utilizei canetinha Pigma Micron azul 0.1 nas linhas, e marcador Tombow n. 451 azul claro. O primeiro desenho era só um registro pessoal, sem rascunho, sobre o “melhor do meu dia”. Segui o estilo nos desenhos de hoje, desenhando de forma rápida, sem usar lápis antes. Escaneei tudo e separei as imagens no Photoshop.

Você acabou de ler “Quinze dicas para ajudar a ler textos acadêmicos (ou não)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2022. “Quinze dicas para ajudar a ler textos acadêmicos (ou não)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3WN  Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Medo do medo do medo (e um pouco de coragem)

Uma das vantagens de criar filhos é que você descobre a resposta de quase todos os problemas da vida nos livros infantis. Lá estão muitas das emoções do mundo, não importa quão estranhas.

Uma das mais frequentes é o medo. Medo de escorpião, de monstro, de mar, de bicho, de gente, de crescer… Aqui em casa, temos uma coleção de livros sobre o tema. Um dos meus favoritos é “Chapeuzinho Amarelo”, escrito em prosa rimada:

“Não tomava sopa pra não ensopar.
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada,
deitada, mas sem dormir,
com medo de pesadelo.”

E de tantos medos, Chapeuzinho Amarelo tinha um maior que todos: medo de lobo:

“Mesmo assim a Chapeuzinho
tinha cada vez mais medo
do medo do medo do medo
de um dia encontrar um LOBO.
Um LOBO que não existia”

Um dia, a menina encontrou um lobo de verdade — desses assustadores, com boca e dentes gigantes — e o efeito foi surpreendente:

“Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo,
o medo do medo do medo,
de um dia encontrar um LOBO.
Foi passando aquele medo
do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco
de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo
e ela ficou só com o lobo.”
(…)
“O lobo ficou chateado.”

O lobo se irritou. Que audácia! Insistia em assustar a menina, gritando que era um LOBO! E, de tanto ouvir aquela palavra — lo-bo-lo-bo-lo-bo-lo…–, Chapeuzinho pensou…

“E o lobo parado assim
do jeito que o lobo estava
já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo,
tremendo que nem pudim,
com medo da Chapeuzim.
Com medo de ser comido
com vela e tudo, inteirim.

E assim seguiu a menina, descobrindo que prefere bolo de chocolate (e não de lobo), sem medo de carrapato, de chuva, de brincar ou de se machucar.

Lembrei desse livro porque, depois de tanta auto-exposição online (aqui e aqui), acabei recebendo muitas mensagens sobre medos da vida acadêmica: medo de escrever, medo de falar, medo de não conhecer teorias suficientes, medo de metodologia, medo de mudar de orientador, medo de trancar o mestrado, medo de continuar, medo de terminar, medo de banca, medo de não conseguir um trabalho, medo de ensinar, medo de nunca publicar…

Mas o medo mais frequente é o de “descobrirem que sou uma fraude”. Não é tanto o medo de “ser uma fraude” (porque infelizmente muita gente já se acha uma fraude, já acha que a vida acadêmica não é pra si etc.). O medo é de algo que confirme isso, desde não conseguir terminar um TCC até não passar num concurso, ou ter seu artigo recusado.

Numa aula de metodologia em que participei recentemente, como convidada, várias alunas mencionaram que a parte mais impactante do livro Truques da Escrita foi o capítulo “Riscos”, escrito pela Pamela Richards, ex-aluna do Becker. É um depoimento sobre o medo de ser considerada uma fraude, o medo de se expor às críticas, de não ser boa o suficiente, de não ser considerada inteligente, de não ter legitimidade para ser considerada uma profissional da área etc. Porém, o mais interessante é que a Pamela aponta as consequências de se sentir assim: quem tem muito medo não se arrisca, não se expõe, “não fala nada pra não engasgar”, como Chapeuzinho Amarelo, antes de encontrar o lobo. Nas palavras da autora:

“Esse problema da confiança é crítico porrque desgasta o tipo de liberdade emocional e intelectual de que todos nós precisamos para conseguir criar.” (Pamela Richards)

Ao mesmo tempo em que coloca o dedo na ferida, Pamela aponta caminhos para se fortalecer: olhar para trás (vendo o que te levou a conquistar o lugar onde você se encontra); olhar para frente (conversando com amigos sobre o que você pretente com sua pesquisa). É preciso encarar o lobo da escrita:

“…quanto mais você escreve, mais fácil fica, porque com a prática você aprende que não é tao arriscado quanto temia. (…)
…estou aprendendo, ao passar mais tempo escrevendo, que vale a pena correr esses riscos.” (Pamela Richards)

É isso, pessoal. Talvez todos esses medos sejam como aquelas pequenas faunas caseiras, tão apreciadas pelas crianças, como diz um menino, em outro livro:

“Gosto de você, aranha, porque você não pica nem arranha.”

Ah, antes de me despedir: por que essa imagem ilustrando o post? Porque achei maravilhosa a liberdade dessa mulher, vestida do seu jeito, barriga de fora, sutiã aparecendo, carteira dourada debaixo do braço, sandália confortável nos pés, como se dissesse pro mundo: “meu corpo, minhas regras”. Assim arrisquei desenhá-la também, aceitando as distorções da rapidez, colorindo com as limitações que o meu papel permitia, mas sentindo uma profunda gratidão por ela existir e por eu mesma me permitir arriscar. Às vezes é só disso que precisamos: ter menos medo e sair pra brincar.

Sobre as citações: Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, ilustrado por Ziraldo (Ed. José Olympio). Truques da escrita, de Howard S. Becker (Ed. Zahar, trad. Denise Bottmann). Os trechos citados são todos do capítulo 6, escrito quase inteiramente por Pamela Richards, ex-aluna do Becker. A história da aranha, diversos autores (ed. Ática, série Lelé da Cuca, trad. Luciano V. Machado).

Sobre a imagem: Esse desenho é o número 15 do Projeto 50 Pessoas que comecei no final do ano passado e interrompi na metade devido à pandemia. Linhas feitas com canetinha de nanquim permanente Pigma Micron (0,05) por observação rápida de foto tirada por mim pela janela do ônibus em um caderninho Hahnemühle. Aquarelas acrescentadas em casa com essa paleta. Para mais detalhes, ver a página sobre os materiais que utilizo.

Você acabou de ler “Medo do medo do medo (e um pouco de coragem)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2020. “Medo do medo do medo (e um pouco de coragem)”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3Rk. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Entre o inofensivo e o mortífero: a delicadeza e o talento de Bel Franke

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Era uma vez uma jovem, Isabel Franke, que tinha uma página no Facebook sobre fotografia e antropologia. Cada semana publicava um texto melhor que o outro. Um dia, de tanto receber meus elogios, ela respondeu perguntando se eu poderia ler seu projeto para o mestrado. Era uma ideia linda e desafiadora. Conversa vai, conversa vem, ajusta daqui e dali: vaga conquistada. Que alegria! Moramos em cidades diferentes mas nos acompanhamos de longe.

Para minha surpresa, meses depois recebi uma mensagem do Chris Tambascia, amigo querido, dizendo que precisava de mim numa qualificação. Logo eu? Não tenho mais nada pra dizer… “Essa você vai aceitar”, ele respondeu: é da Bel Franke.

E aceitei mesmo, e me maravilhei como estava tudo mudado. Só que era a mesma Bel: forte, delicada, inteligente, entregue ao exercício de pensar. Tempos depois nos conhecemos pessoalmente e, há poucos meses, depois de lutas internas intensas, estive no festejado dia da defesa. Ela não acha, mas eu sim: já nasceu mestra. A diferença foi só o diploma.

Quem vê de longe, pensa que a vida pra Bel foi fácil. Só sei da pontinha do iceberg, mas dá pra ver que o mar é profundo. Só uma pessoa com um oceano dentro de si é capaz de fazer uma dissertação sobre fotografia, ilustração, morte, guerra e máscara de gás nos deixando maravilhados. Onde ela se debruça surgem novas camadas.

A Bel é casada, tem bichos e trabalha com educação infantil num museu. Agora, faz parte de um projeto sobre história das roupas e dos tecidos, o Traje Brasilis: vestindo a história do Brasil, além de escrever seu próprio blog: belfranke.com.

Foi do blog da Bel que retirei as imagens para pintar as aquarelas que ilustram esse post. O estojinho preto com fita dourada foi feito por ela à mão, inspirada em um hussif, kit de costura popular nos séculos XVIII e XIX. O estojo antigo, à direita, foi pintado por mim a partir de uma foto de um hussif e um kit de linhas utilizado por um soldado neozelandês na Primeira Guerra Mundial, acervo do Auckland Museum. Para ler sobre a conversa entre esses dois objetos, leiam o post original “O hussif: ou quando a costura histórica e a dissertação se encontram“. Ali vocês terão uma amostra do talento dessa escritora, antropóloga, artista, costureira, historiadora e contadora de histórias. Há na sua arte uma tensão que remete ao sentido da vida, entre o “inofensivo e o mortífero”, como em sua análise de uma imagem de 1919:

“Costurar parece a única ação realmente humana, e por isso chama a atenção como esse personagem [um soldado] está despido de seu equipamento: o capacete que está aos seus pés e a bolsa que deixa entrever o tubo sanfonado de sua máscara de gás. Retratado em pleno ato de puxar a linha, é ele que tensiona toda a pintura, como se sintomatizasse a inutilidade e o absurdo da guerra.” (Bel Franke)

Não podia deixar de compartilhar com vocês esse duplo “pensar e fazer” que a Bel evoca. Tenho sentido em muitos jovens com quem converso a vontade de agir, de produzir concretudes. Concordo, apoio, preciso!

Entre a inocência e a morte, há um fio tênue —  entre a potência de uma criança feliz e a queda no precipício da decepção. De que lado queremos estar?

Não tenho muitas certezas, mas essa sim: estou do lado das crianças e dos sorrisos, da Bel e das costuras, da vida e não da máscara.

Para todos que vão entregar qualificações, dissertações e teses agora em março: meu abraço apertado e um lembrete: “quando não precisamos mais ser perfeitos, podemos ser bons” [And now that you don’t have to be perfect, you can be good. John Steinbeck, East of Eden], epígrafe desse post.

Para todos os professores que estão estreiando ou voltando às aulas: sorriam, sejam gentis, bebam água, descansem. A sociedade pode não nos valorizar como gostaríamos, mas nós somos a base de tudo. Muita transformação pode acontecer dentro da sala de aula — e quem sabe a primeira delas seja aprender tanto quanto ensinar. Dicas de volta às aulas nesse post, e sobre a importância do sorriso do professor, aqui.

7 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-emocionantes-e-dignas-de-nota da semana:

♥ A vitrola da Alice continua a mil. Os hits atuais são “Tanto amar“, do Chico Buarque e “Baby“, na voz da Gal Costa. Ela não apenas ouve, mas canta e se acompanha no violão. Haja emoção.

♥ Antônio fez 19 anos! Quem me acompanha nas redes já sabe: compartilhei uma foto linda dele, com o sorriso maior que o mundo — uma imagem que toda pessoa que ama sonha em ver no rosto do filho.

♥ Um acontecimento inusitado. Minha mãe resolveu dar um tênis bonitinho de aniversário pro neto. (Por convicção, Antônio só tem um par de tênis e um de chinelos. Imagina o perrengue com essas chuvas.) Compra feita, presente dado, opa: “tem algo estranho, mãe”. Acreditam que o vendedor colocou na caixa um pé de cada tamanho? No dia seguinte tivemos que ir à loja trocar e ainda ouvimos um pedido de desculpas bem “mixuruca”, como dizia minha avó.

♥  Encontrei um ex-aluno que fez biscoitinhos pra nós, aprendi sobre o projeto para escolas do Permacultura Lab, da Unirio, telefonei para uma amiga que virou psicóloga, troquei mensagens com pessoas solidárias, recebi zaps de alunas com saudades das aulas. Muito obrigada, gente! Não sei realmente onde eu estaria sem vocês.

♥ Telefonei para um amigo que perdeu uma pessoa querida, mandei cartão com flores para outro que tá sofrendo. É difícil saber o que dizer nessas horas? É sim. Mas é importante. Não importa quão sem graça você fique — é mais digno dizer qualquer coisa do que ficar em silêncio.

♥ Na pintura, me dediquei ao desenho desse post e estou tocando também o projeto das 50 pessoas em aquarela (23/50). Preciso de dicas de lugares que sejam abrigados da chuva e bons para observar gente. Qualquer sugestão é válida. Agradecida.

♥ Uma leitora sugeriu um acréscimo na receitinha para lidar com desamor etc.: cuidar de plantas! ♣ Adorei a lembrança. Já tive uma varandinha repleta de vasos e flores. Minha planta preferida é o jasmin branco, desses que se enrosca nas coisas. Tem um cheiro maravilhoso e me lembra a casa da minha avó. Depois de ter gatos deixei de ter plantas, porque são perigosas pra eles; e talvez porque não tive como cuidar de tantos seres vivos ao mesmo tempo. Mas recomendo sim! Vou editar o post acrescentando essa dica. Obrigadíssima, Ana Valéria! ♥

Sobre o desenho: Desenhei a partir de fotos do post sobre os hussifs da Bel Franke. Linhas feitas com canetinha Pigma Micron 0,05 de nanquim permanente, em um papel Canson do bloco Aquarelle XL. Pintura feita com aquarelas dessa paleta. Depois escaneei e limpei as sombras do papel no Photoshop. Não deixem de ler o post original da Bel para acompanhar de perto a análise e outras imagens incríveis que ela publicou. Ah, já ia me esquecendo: a aquarela original será um presente para ela! ♥

Você acabou de ler “Entre o inofensivo e o mortífero: a delicadeza e o talento de Bel Franke“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2020. “Entre o inofensivo e o mortífero: a delicadeza e o talento de Bel Franke”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3Qr. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Os afetos que nos movem

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“Professora Karina!
Escrevi para você por e-mail no início de 2019. Conversamos sobre as durezas dos nossos tempos, desde o incêndio do Museu. Te contei do que mamãe me falava sobre fragmentos de felicidade e de como seu blog cumpriu um papel fundamental na minha saúde emocional de pesquisador.
Essa madrugada eu terminei o texto da dissertação. Tudinho. Pronta para imprimir. E na hora lembrei de todos os textos que você já escreveu e que serviram como abraços para nós, jovens cheios de incerteza sobre a qualidade do que fazemos.
Queria reafirmar a você o quanto seus textos foram importantes para me convencer a acreditar em mim mesmo. Muitíssimo obrigado, professora Karina! Você cumpre um papel indispensável e de excelência na academia brasileira”

Recebi esse texto hoje e não pude deixar de me emocionar. Normalmente não compartilharia aqui um elogio a mim mesma, mas relevem: estou merecendo.

Na semana passada, fui jogada de um barco em alto mar. Foi um susto, uma violência? Foi. Mas sou grandinha e sei nadar. Tô ferida-viva, aquecida pelas mensagens de carinho e conseguindo fazer uma das coisas que mais amo no mundo: escrever e desenhar para compartilhar com vocês.

Respondi ao jovem da mensagem com o maior sorriso que encontrei dentro de mim. Agradeci cada palavra e disse aquilo que um dia tanto me ajudou na tempestade que foi o meu doutorado: “Parabéns por finalizar a sua dissertação. É sua, é seu trabalho; é algo que ninguém nunca vai poder tirar de você.

E completei: nos momentos difíceis, cada vez mais acredito que o caminho é a gente se doar — compartilhar coisas e conhecimentos para, quem sabe, facilitar a vida de quem estiver precisando.

No meio da nossa conversa, que seguiu por muitos parágrafos, ele mencionou um verso da música do Caetano Veloso, “Desde que o samba é samba”. Cito duas estrofes:

“Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora”

“O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
O samba é pai do prazer
O samba é filho da dor
O grande poder transformador”

Sem que eu precisasse explicar nada do que estava acontecendo comigo, ele escreveu:

“A família por vezes faz com que passemos por momentos delicados. Eu desejo de todo coração que tudo isso passe, passe logo, e que enquanto isso não acontecer, que você tenha serenidade para lidar com aquilo que escapa ao seu controle.

Junto com a terapia, a meditação foi um outro instrumento que me ajudou a cuidar de mim. Às vezes, a única coisa que o dia pede é essa lição de sentar, respirar e observar nossas dores. E no fim, conseguimos até valorizar nossos fragmentos de felicidade, mesmo quando tudo fica ‘demorando em ser tão ruim’.

O que afaga o coração é olhar para o lado e ver que os afetos seguem nos movendo. Talvez essa seja das coisas mais doloridas, mas igualmente mais fascinantes da condição humana. (…) Talvez o melhor caminho seja ser mais fiel às nossas vontades do que aos nossos medos.”

Como eu poderia escrever melhor? Que presente ler algo tão significativo. Quanta sabedoria numa pessoa que acabou de passar por processos difíceis.

Quanto estamos em sintonia conosco, as pessoas e as portas certas parecem nos encontrar e se abrir sem esforço. Quando não, tudo parece demorar em ser tão ruim…

Como saber se estamos diante da porta certa? Para mim, é quando encontro um sorriso íntimo, um suspiro gostoso, uma vontade de cantar um ‘samba transformador’. Mesmo que o mundo lá fora diga não. Respondi para ele (e pra mim): “Fique atentos. Quando o coração bater de alegria, presta atenção. Quando bater de alívio, porque algo tava pesando, presta atenção também. É nisso que tenho pensado nesse momento.

Diante da tsunami e do mar sem boias, precisamos nadar e buscar novos sentidos para nos sentirmos inteiros. (Tem receitinha-lembrete no post da semana passada).

Meu desejo para vocês que estão terminando suas dissertações e teses nesse momento: força, calma, clareza, compaixão, paciência, e um pouquinho de disciplina, que não faz mal à ninguém. E lembrem-se do nosso mantra: “vai passar”.

Boa sorte, pessoal! Saibam que cada um de vocês importa, cada pesquisa importa, cada parágrafo que produz conhecimento sobre esse nosso mundo doido importa!

Coisas impossivelmente-legais-bonitas-emocionantes-e-dignas-de-nota da semana:

♥ A vitrola antiga-nova da Alice está a mil alegrando a casa. Ela está ganhando e comprando vinis, de João Gilberto a Diana Ross. ☺

♥ Visitamos nossa amiguinha do peito Helena e saímos de lá com uma foto polaroid. Que coisa fofa!

♥ Fomos ao teatro ver a última sessão da temporada de Novos Baianos – O musical. Emocionante! É indescritível de tão lindo o trabalho dos atores-bailarinos-músicos. Não percam quando o espetáculo voltar ao Rio.

♥ Encontrei ex-aluna, ex-colega de departamento, amiga de infância, amigas de internet, amiga de trabalho, amiga de desenho, amiga de bairro, prima, irmã, mãe, titia. Mulher é um bicho bom demais, gente. Mulheres maravilhosas, obrigada! ♥

♥ Para não desqualificar a categoria como um todo, vamos lá, tenho que admitir: quatro homens foram engraçados, gentis e solidários, sendo um deles o que me escreveu as mensagens desse post.

♥ Tento tentado postar diariamente nos stories do meu Instagram. Consegui redesenhar e pintar à mão a logomarca que aqui no blog ainda estava na versão original do App. Agora ficou assim:

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Sobre o desenho: Esse jovem no metrô é parte do meu projeto 50 Pessoas em Aquarela (estou na pessoa 21/50). Linhas feitas por observação direta no Metrô do Rio, voltando tarde da noite. A canetinha foi uma Pigma Micron 0,05 de nanquim permanente. O caderno foi um bloquinho Hahnemühle como esses aqui. Adicionei as cores em casa, com as aquarelas que estão nessa paleta. Depois escaneei e limpei as sombras do papel no Photoshop. O rapaz bonito estava entretido com um grupo de música cujo aparelho de som estava bem ao seu lado no chão.

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Meu TCC mudou minha vida

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“O difícil não é ser complicado; o difícil é ser simples. Quanto mais você conhece algo, mais clara deve ser sua explicação.” (Citando de memória minha orientadora de TCC, Angeluccia Habert)

Até o último ano da faculdade de jornalismo, eu não tinha ideia de como fazer uma pesquisa, apesar de quase metade do meu curso ser composta de disciplinas como história, antropologia e sociologia… Para minha sorte, no último ano era obrigatório fazer um semestre de Metodologia de Pesquisa e outro de Monografia (mais conhecida como TCC,  Trabalho de Conclusão de Curso).

Cheguei na aula de Metodologia de pé atrás, porque a professora Angeluccia Habert tinha fama de durona. Como eu trabalhava e fazia faculdade à noite, precisava escolher as matérias para me dedicar enquanto ia levando as outras. Achei que Metodologia cairia nesse limbo, mas me apaixonei!

O segredo desse amor foi que aprendi a fazer uma pesquisa aprofundada. O principal livro da disciplina era Comunicação de Massa: Análise de Conteúdo, de Albert Kientz. Não tenho referências atuais sobre o autor, mas me marcou demais como ele e a Angeluccia me ensinaram de forma didática que era preciso decupar um material e analisar cada pedacinho, para só depois tentar interpretações mais amplas. Fiquei fascinada por existir um método passo a passo.

Para Metodologia, fiz um trabalho final sobre o conceito de indivíduo em obras teatrais de Mauro Rasi. Através de amigos em comum, consegui os roteiros de três peças que giravam em torno do tema família. Pesquei algumas referências teóricas sobre individualismo e fui. Lembro de suar muito para escrever um texto corrido que juntasse os trechos das peças e as questões dos autores, mas acabei tirando 9,0 — uma nota fantástica para a Angeluccia. Esse trabalho, inclusive, foi crucial para que eu passasse no mestrado em antropologia, pois era a única pesquisa que eu tinha para mencionar na entrevista.

No semestre seguinte, pedi à Angeluccia para ser minha orientadora de TCC. Se lembro bem, por ser super exigente, ela não tinha filas. Faltavam só cinco meses para colar grau quando tive a primeira melhor notícia da minha vida, que foi passar no mestrado para o PPGAS, no Museu Nacional/UFRJ. Agora é que a monografia tinha que sair decente.

Nessa época, eu trabalhava na antiga Rádio JB AM, só de notícias. O sistema Jornal do Brasil tinha um setor de pesquisas incrível. Como estagiária e depois repórter, eu amava vasculhar esse material, que abrangia não apenas o JB mas dezenas de veículos de imprensa, por décadas. A primeira coisa que decidi foi fazer meu TCC trabalhando com cinco jornais impressos. Depois, resolvi focar em como esses veículos retratavam as empregadas domésticas durante um recorte temporal específico.

Não tenho mais o material da pesquisa empírica: eram quase 70 reportagens com suas respectivas fichas de decupagem e uma grande tabela de análise feita à mão em duas cartolinas brancas grudadas (que eu precisava enrolar para transportar). Entrevistei também uma pesquisadora que trabalhava na área. Feita essa parte, restava escrever… Haja coca-cola diet (era novidade) para me manter animada a terminar. O cenário dessa fase está na ilustração acima: um computador dos anos 1980, muitos jornais velhos, disquetes, lápis, caneta, a tabela de análise enrolada  e algumas cópias de textos.

Mas por que o título dramático desse post — “Meu TCC mudou a minha vida”?

• Porque eu nunca teria me tornado pesquisadora e professora se as disciplinas de Metodologia e de TCC não fossem obrigatórias no curso de Comunicação.

• Porque, às vezes, as coisas que a vida te obriga a passar são justamente as que te abrem os caminhos mais interessantes.

• Porque até na minha banca de doutorado, um dos meus ídolos da antropologia afirmou que um dos pontos altos da tese eram os trechos de análise de discurso dos meus interlocutores.

• Porque ainda hoje, quando oriento meus alunos, volto ao básico que aprendi com a Angeluccia e com o Kientz: uma boa investigação parte de um recorte preciso e de uma análise minuciosa das fontes.

• Porque tudo isso reafirma que não precisamos apelar para conceitos mirabolantes para fazermos bem feito.

• Porque criar algo por meio de uma pesquisa nos faz um bem danado.

• Porque o conhecimento contribui para um mundo melhor.

É simples.

Boa semana, com ótimas escritas, desenhos e pinturas, pessoal! ☼

Sobre o desenho: Uma novidade: o desenho desse post foi feito no papel e depois finalizado no Ipad. Estou assistindo um curso online só para aprender a mexer no Procreate. É um mundo de possibilidades. Nesse caso específico, comecei de forma tradicional: reuni fotos de objetos da época, depois fiz um desenho no verso de uma folha de papel A4 (bloco Canson Aquarelle) com canetinha Pigma Micron 0.2. Comecei a pintar com aquarela mas me deu uma preguiça enorme, por ser um tamanho grande (prefiro pintar A5 ou A6) e pelo mundo de detalhes da pilha de jornais… O original ficou largado na minha mesa por vários meses… Com o Ipad, resolvi testar adicionar as cores e sombras no Procreate. Vejam abaixo como estava no início do processo e como foram as camadas adicionais de sombras e cores (juntei todas para facilitar a visualização):

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Abaixo, o desenho final com as duas imagens acima reunidas, e o fundo do papel clareado depois no Photoshop:

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Adorei a experiência! Apesar de também ser bastante trabalhoso, colorir no Ipad tem o conforto de te permitir testar e desfazer, além de possibilitar coisas impossíveis em aquarela, como pintar letras verdes sobre um fundo escuro. No papel, eu teria que usar guache e mesmo assim seria bem difícil. Na maior parte do processo, utilizei o pincel Calligraphy – Water Pen, que já vem com o app.

Isso me lembra que preciso atualizar urgentemente o post sobre os 12 Cursos de Desenho, que está sempre entre os mais visitados do blog. Já fiz pelo menos outros 12 cursos desde então — amo ser aluna!

Se quiserem saber algum detalhe que esqueci de explicar, escrevam nos comentários por favor. ♥

Você acabou de ler “Meu TCC mudou minha vida“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2020. “Meu TCC mudou minha vida”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3PI. Acesso em [dd/mm/aaaa].


A antropologia como uma forma de olhar o mundo – minha entrevista a Diana Mello para a revista Kula

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Antropologia, inovação, trajetória acadêmica, desenho, saúde mental — esses foram alguns dos temas que falei em uma entrevista a Diana Mello para a revista Kula: Antropología y Ciencias Sociales. A Diana é uma ex-aluna querida (criativa, talentosa e sensível!), que esteve na primeira turma do curso de Antropologia e Desenho no IFCS, em 2013. De lá pra cá, criei esse blog e ela já está no doutorado na Argentina, sua terra natal.

Seguem alguns trechos da conversa para vocês (créditos e link para a publicação completa no final).

Sobre como podemos continuar gostando de antropologia, apesar de…:

KK — “…quando nos debruçamos sobre a vontade de conhecer as pessoas, [descobrimos] que muitas vezes elas são mais parecidas conosco do que a gente imaginava e, portanto, não são bem “outros”, são “interlocutores”. (…) Com todas as ressalvas, acho que sobrevive na antropologia um projeto de produção de conhecimento entre pessoas, e esse projeto continua sendo válido para mim. É isso que me faz continuar acreditando, sem negar que em toda área científica existem relações de poder que precisam ser reveladas e compreendidas.”

Sobre ser jornalista e virar antropóloga na primeira pesquisa de campo na Câmara Municipal do RJ:

KK — “…uma casa legislativa é um espaço extremamente restrito e o meu crachá [de jornalista] abriu portas. O difícil era dizer para as pessoas: ‘Olha, quero conversar com você, mas isso não vai sair em nenhum jornal’. Aí os vereadores respondiam que não tinham tempo para conversar comigo. Isso foi muito revelador. Hoje, entendo melhor que quem somos provoca uma série de situações no campo que são indissociáveis do conhecimento que produzimos.”

Comentei com a Diana como fui acolhida pelo professor Gilberto Velho no Museu Nacional, apesar da precariedade da minha formação. Além dele, devo demais a professores como Moacir Palmeira, Luiz Fernando Dias Duarte e Lygia Sigaud. Eu diria que todos, assim como a Maria Claudia Coelho (minha professora na graduação), me ensinaram que a antropologia é uma área conectada com a história, a sociologia, a política, a literatura, a arte etc. Essa perspectiva foi fundamental para que eu pudesse fazer a virada para o desenho:

KK — “Em 2011, fui a Portugal a trabalho e lá participei de um evento de desenho urbano, o segundo encontro internacional do grupo Urban Sketchers. Assisti a uma série de palestras, de pessoas que não eram cientistas sociais, mas que me abriram para a ideia de que o desenho poderia ser uma porta para conhecer o mundo, que podia ser uma ferramenta de renovação da antropologia pelo grafismo. Voltei dessa viagem e, apesar de já ter um projeto de pesquisa pronto sobre arquivos políticos, resolvi escrever um projeto novo sobre “antropologia e desenho”. O projeto foi aprovado e elogiado pelo CNPq. Conforme fui amadurecendo, tive a ideia de criar uma disciplina na graduação voltada para o tema. Comecei em 2013 e continuo até hoje.”

Depois de falarmos mais do mundo acadêmico, Diana me perguntou por que criei esse blog:

KK — “O blog surgiu da minha vontade de juntar o desenho com o texto. (…) Foi um espaço que comecei com zero expectativas, simplesmente para me obrigar a escrever um texto e produzir um desenho toda semana, tentando me inserir também no mundo do desenho onde naquela época era obrigatório você ter um blog.

O primeiro post de sucesso aconteceu em dezembro de 2013. Fui dar uma palestra e me colocaram no último horário do último dia do evento, a plateia praticamente vazia. Eu tinha tido um grande trabalho pensando no roteiro e desenhando à mão todos os slides. Como quase ninguém assistiu ao vivo, resolvi colocar no blog o post Dez Lições da Vida Acadêmica. Foi o primeiro que viralizou, e hoje tem mais de 20 mil views. A partir disso, percebi como havia uma brecha no mundo acadêmico para falar com mais leveza e humor sobre a vida acadêmica.”

Contei para a Diana que a coragem de ser mais irreverente veio também do meu contato com o Howard Becker. Uma coisa que acabei não contando na entrevista foi que o Howie (como ele gosta de ser chamado) uma vez me provocou, questionando por que no Brasil os intelectuais passam a vida toda trabalhando com um tema só. Comecei a respondê-lo de um jeito meio formal, dizendo que era dificuldade de verba de pesquisa etc., e que isso me aborrecia também. Ele se virou para mim e perguntou: “– Por que você não faz de outro jeito?”

Essa conversa ocorreu durante a entrevista que fiz com ele em 2008, por ocasião de seus 80 anos. Naquele dia, ele plantou uma ideia na minha cabeça — algo que foi frutificando nas mudanças que se seguiram em direção ao desenho e à pintura. Como lembro na entrevista à Kula, o próprio Howie é extremamente inovador em sua prática, estudando temas tabu, circulando artigos por e-mail e no seu blog.

Diana perguntou ainda sobre como surgiu o assunto da saúde mental aqui no blog:

KK — Tudo começou por causa de um post escrito a partir do encontro com um ex-aluno da graduação que estava fazendo seu Doutorado. Encontrei com ele no IFCS e ele estava visivelmente mal. Resolvi publicar no blog uma Carta a um jovem doutorando. Nesse post, que também viralizou, eu falo de todos os problemas de saúde e emocionais que eu mesma passei no Doutorado.

(…) Está complicado para os alunos fazerem um curso de Ciências Sociais no Brasil hoje. É desafiador você segurar a saúde mental num contexto em que a pesquisa em Sociologia é considerada uma ‘ferramenta do mal’ pelos setores que ocupam os espaços de poder na sociedade.

Para terminar, respondi à Diana qual conselho eu daria para quem está lutando para permanecer na antropologia e na universidade:

KK — “Um bom conselho é você buscar aquilo que te afeta, aquilo que te mobiliza afetivamente, para que a vida acadêmica tenha o seu lado de prazer, de construção, de emoção, porque sem isso você não segura o lado do sofrimento. (…) Além de muita determinação, paciência, foco e calma, é importante se cercar de pessoas que compartilham essa paixão com você, porque precisamos de grupo, de redes de apoio. (…) Primeiro você precisa viver, estar bem, se alimentar, dormir, estar inteira e não esquecer disso.”

Encerramos conversando sobre a importância de poder desacelerar para se aprofundar na pesquisa. Contei que valorizo muito a autonomia de pensamento, e que alunos têm sim direito de se tornar autores. Às vezes é bem difícil aceitar isso, mas repito: “não importa se já escreveram antes”. Os encontros autorais, bibliográficos e pessoais são únicos e merecem ser analisados e descritos. Não devemos nos censurar por querer produzir: “você pode prestar contas para a academia sem se anular, sem apagar a sua singularidade”.

Para ler a entrevista completa: A antropologia como uma forma de olhar o mundo: uma conversa com Karina Kuschnir. Entrevista concedida a Diana B. Mello. Kula. Antropología y Ciencias Sociales, nº 20/21: Especial aniversario. Diciembre, 2019, p. 22-29.

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A revista Kula é feita por alunos de pós-graduação de diversas instituições universitárias na Argentina, mas aceita artigos em português. A chamada para o próximo número está aberta!

E-mail para contato: revistakula@gmail.com

A Diana Mello está no Rio fazendo trabalho de campo até final de fevereiro. E-mail para contatos: didibmello@gmail.com

6 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-e-dignas-de-nota da semana:

♥ Holly Exlley, uma das minhas aquarelistas preferidas do You Tube, lançou um vídeo novo com time-lapse de pintura.

♥ Terminamos a 6ª temporada de Brooklyn 99 e começamos a 3ª de Mrs. Maisel. Que produção, que diálogos! É um show.

♥ A Public Domain Review fez uma foto-montagem divertida e listou vários autores, artistas e músicos que entram em domínio público em 2020 (em inglês).

♥ A Valéria Campos do blog 1 Pedra no Caminho publicou (em co-autoria com Fernanda G. Matuda) um artigo bacana intitulado Uso de podcasts como potencializador do desenvolvimento de gêneros orais em aulas de língua portuguesa no ensino médio. Ela fez um resumo com destaques do texto aqui. Achei uma reflexão super bem-vinda também para aulas de graduação.

PS: A professora Julia O’Donnell (IFCS/UFRJ) fez um projeto com podcasts numa turma de Antropologia Urbana em 2019-2. Quem sabe ela escreve um relato para o blog? O que vocês acham?

♥ Por falar em podcasts, Daniela Manica (Labjor/Unicamp) e Soraya Fleischer (UnB) coordenam o novíssimo Mundaréu, podcast de divulgação científica sobre Antropologia. Super inovador, entrevistando antropólogas e seus interlocutores nessa primeira temporada. Uma alegria de ouvir!

♥ Em 2020 retomei minhas práticas de GTD (sigla de Getting Things Done). Já ouviram falar? A Thais Godinho explica super bem no blog Vida Organizada ou no You Tube (versão curta / versão longa). Eu não sigo tudo certinho, mas gosto da filosofia de buscar tranquilidade e foco para fazer aquilo a que você se propõe. Nada a ver com produtivismo. Como diz a Thais no primeiro vídeo:

“Às vezes, a coisa mais importante que você tem para fazer é não fazer nada; é descansar.” (Thais Godinho)

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Hoje não tem “sobre o desenho”, porque a ilustração foi a capa da revista Kula. Adorei as linhas sobrepostas da logomarca que, assim como a capa, foram criadas pela designer Valeria Mattiangeli.

Tenho desenhado o projeto “50 Pessoas” e compartilhado no Stories do Instagram. Já já trago as imagens juntas pra cá. Boa semana, pessoal. ☼

Você acabou de ler “A antropologia como uma forma de olhar o mundo – minha entrevista a Diana Mello para a revista Kula“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2020. “A antropologia como uma forma de olhar o mundo – minha entrevista a Diana Mello para a revista Kula”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3P6. Acesso em [dd/mm/aaaa].