Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Uma doce sensação de abrigo em 2024

Pessoas queridas, pensei que estava só com paciência e prática, mas lembrei que estou apaixonada pela George Eliot. Em sua escrita, tudo é sério e irônico — tudo é “brincadeira e verdade”, como na música do Caetano. É um deslumbramento.

No seu livro mais autobiográfico, O moinho à beira do rio Floss, Eliot nos conta a história de Maggie Tulliver, uma menina de “oito ou nove anos, bem-educada e bem instruída” que tinha frequentado “só um ano num colégio …e tinha tão poucos livros que às vezes lia o dicionário. Se déssemos uma volta pelo seu cérebro, encontraríamos lá a mais inesperada ignorância.” (p. 121) Será?

Logo que a conhecemos, Maggie se esconde com uma tesoura para cortar os próprios cabelos, cansada das críticas da família e de ser menina. Tempos depois, foge de casa para ser livre e viver com os ciganos. É comovente acompanhar como descobre a pobreza e seu despreparo diante do mundo.

Encanta-se com Philip, um jovem que sabia contar histórias, muito tímido devido à corcunda de nascença. Adorava-o, até porque:

“Maggie tinha uma certa ternura pelas coisas deformadas; preferia sempre as ovelhas de pescoço torto, porque lhe parecia que as que eram fortes e bem constituídas não apreciavam tanto os carinhos, e ela gostava de fazer festas a quem as apreciasse.” (p. 192)

Quando Maggie se apaixona pelos livros que finalmente tem às mãos, reflete:

“Nos livros havia sempre pessoas amáveis e ternas, e que gostavam imenso de agradar uns aos outros. O mundo fora dos livros não era um mundo feliz; parecia ser um mundo onde as pessoas se portavam o melhor possível com as pessoas que não amavam e que lhes não pertenciam.” (p. 256)

De todos, ouve que tem de “ter paciência”. Exercita essa habilidade, censura-se tanto que experimenta a paz no “quietismo” que a tudo renuncia. Até que a vida lhe chama e seu coração é fulminado por um amor impossível. Diante da necessária separação, Maggie (e Eliot) dizem:

“Não posso esquecer tudo e começar outra vida. Devo voltar para trás, muito embora eu sinta que, sob os meus pés, já não existe nada de sólido.” (p. 525)

Como Eliot já havia nos preparado, Maggie desejava o que, de certo modo, todos nós também queremos:

“…era uma criatura cheia de anseios apaixonados e entusiastas por tudo o que era belo e alegre; sedenta de todos os conhecimentos, (…) com um inconsciente desejo de qualquer coisa que (…) desse à sua alma uma sensação de abrigo.” (p. 257, no original,   “a  sense  of  home)

É isso, queridos leitores. Que 2024 traga a todos nós paixão, paciência e prática, mas sobretudo o acolhimento da casa, com sua doce “sensação de abrigo”! ♥

A imagem que abre este post está em alta resolução e segue aqui um pdf para download que vocês podem baixar para imprimir. Vai com carinho especial para todos que estão enfrentando as festas em meio aos prazos de TCC, dissertações, teses e outras pressões acadêmicas ou não.

Sobre o desenho: Grafia e cores inspiradas na arte de Tom Gauld. O lema dos três Ps inventei há uns anos inspirada em uma aula online que fiz com o artista indiano-canadense Prashant Miranda. Ele mencionou perseverança ao invés de paciência, mas esta é para mim a maior das virtudes. Tecnicamente, utilizei os materiais de sempre: canetinhas Pigma Micron 0.1 ou 0.05, aquarelas e papel Canson. Se quiserem, tem a versão abaixo dos três Ps para baixar aqui.

Sobre as citações: Li a versão portuguesa de O moinho à beira do rio Floss, de George Eliot (trad. de Fernando de Macedo, ed. Mimética). A versão original está disponível gratuitamente no Internet Archive, mas não me sinto confiante para ler ficcção em inglês. Trago aqui as duas citações finais no original pois são tão lindas:

Trecho orginal sobre a sensação de abrigo: ”Maggie  in  her  brown  frock,  with  her  eyes  reddened  and  her heavy  hair  pushed  back,  looking  from  the  bed  where  her father  lay,  to  the  dull  walls  of  this  sad  chamber  which  was the  oentre  of  her  world,  was  a  creature  full  of  eager,  passionate longings  for  all  that  was  beautiful  and  glad  ;  thirsty  for  all knowledge ;  with  an  ear  straining  after  dreamy  music  that died  away  and  would  not  come  near  to  her ;  with  a  blind,  unconscious yearning  for  something  that  would  link  together  the wonderful  impressions  of  this  mysterious  life,  and  give  her soul  a  sense  of  home  in  it. “

Trecho orginal sobre não ter nada de sólido sob os pés: “No  wonder,  when  there  is  this  contrast  between  the  outward and  the  inward,  that  painful  collisions  come  of  it. I  can’t  set  out  on  a  fresh  life,  and  forget  that :  I  must  go  back to  it,  and  cling  to  it,  else  I  shall  feel  as  if  there  were  nothing firm  beneath  my  feet.” 

Sobre a música do Caetano: Refiro-me ao verso “É tudo só brincadeira e verdade” da canção “Tá combinado”. Aqui a letra e o canto na versão de Betânia.

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Uma doce sensação de abrigo em 2024“, Publicado em karinakuschnir.com, url: https://wp.me/p42zgF-42x. Acesso em [dd/mm/aaaa].

Amo receber comentários e mensagens, mas nem sempre consigo responder com o carinho que vocês merecem. Querendo continuar a conversa, me chamem no chat do Instagram! Obrigada por estarem aqui.♥.


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Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)

Vamos à Parte 2 da aula lúdica que fiz para a disciplina de Laboratório de escrita. Materiais e dinâmicas propostas estão na Parte 1, assim como a análise das duas primeiras perguntas.

Aqui chegamos ao que mais me interessava: como os estudantes se sentem em relação à escrita e à leitura na faculdade de Ciências Sociais? (As respostas são anônimas.)

Pergunta Verde — Como foi sua experiência de escrita mais positiva durante a faculdade? E a mais negativa?

No lado positivo, salta aos olhos que os alunos amam escrever sobre temas que lhes interessam. O mesmo ocorre quando conseguem vencer desafios, tipo “escrever um texto de 10 páginas”, ou conectar autores como “Freud e Lélia Gonzalez”. É desses trabalhos de vulto que eles se orgulham, e ainda mais se tiverem um retorno positivo por parte dos professores. Outra alegria é quando descobrem fontes e métodos, como pesquisar na hemeroteca da Biblioteca Nacional pela primeira vez.

Em relação às experiências negativas, a turma se dividiu entre três queixas principais: a) dificuldade com prazos (a maioria!); b) desgosto com autores e temáticas; c) rejeição a formas acadêmicas, como provas, resumos, formatações complicadas, trabalhos em grupo. Confesso que me surpreendeu ler apenas duas respostas sobre desafios emocionais (depressão e insegurança). Talvez esse tema tenha sido encoberto pelo problema dos “prazos”, com frequência ligado à ansiedade e outros sentimentos difíceis.

Ou seja, profs queridas, para estimular escritas, precisamos dar espaço para eles explorarem escolhas e fontes, mas lembrando de desafiá-los com propostas ambiciosas. Para dar certo, isso tem que vir embalado com cronograma e apoio para redigirem em etapas, sem deixar tudo para o último dia.

Resumindo, é o básico que a gente também precisa, né? Eu pelo menos queria uma prof assim! 😉

Pergunta Laranja — Fã ou Hater — Qual a sua experiência de leitura mais positiva durante a faculdade? (De quais autores você é fã e por que?) E a mais negativa? (De quais autores você é “hater” e por que?)

Essa pergunta trouxe uma contra-estatística maravilhosa do mundinho “das humanas”. As autoras mais amadas são mulheres negras: Lélia Gonzalez, Bell Hooks, Conceição Evaristo, Patrícia Hill Collins, Grada Kilomba, Sueli Carneiro. (Já os mais citados homens foram Paulo Freire e Franz Fanon). Dá para sentir o motivo… As escritas preferidas têm “sensibilidade” para tratar de “problemas do cotidiano”, geram “identificação”, trazem “vivências” próximas e “representatividade”. Como escreveu uma aluna: “lendo Conceição Evaristo me sinto ouvida, contada, vista”.

Em termos de forma, os estudantes preferem “textos simples que conseguem tratar de problemas complexos”, como concluiu o time Laranja. Querem escrita fluida clara, leve, vívida, original, compreensível, coesa, direta, sistematizada, de fácil entendimento, “sem perder a profundidade teórica”.

Falando assim parece tão simples. Só que não é! Haja revisão.

E chegamos aos “haters”. Pierre Bourdieu ganhou de lavada a corrida dos mais detestados, ainda que tenha tido um fã. Foi seguido por outros como Hegel, Durkheim e Gilberto Freyre — este associado ao racismo.

A turma foi direta na descrição do que desgosta: autores pedantes que escrevem textos pretenciosos, rebuscados, enigmáticos, enrolados, truncados, pesados, artificiais. São difíceis de entender e, por isso, dificultam a concentração na leitura. Além do racismo, a literatura acadêmica foi relacionada ao “academicismo”, “descritivismo” e “formalismo”. Um estudante resumiu bem: não gosta de textos que ficam “dando voltas e não dizem o que querem dizer”. Errado não está, né?

Confesso que até tentei defender Bourdieu, mas lembrei da época dos meus estudos para o mestrado em que chamei um amigo francófilo para me ajudar a lê-lo. Era um artigo publicado no auge da sua fase rebuscada. Meu professor olhou praquilo e disse: “isso não está em francês não!” Se ele que dominava a língua não estava entendendo nada, que chance eu teria? Deixei pra lá e rezei. (Deu certo.) Anos depois descobri que havia outros “bourdieus” e, embora não seja fã, consegui entender suas ideias.

Voltando ao assunto: concordo com tudo que a turma diagnosticou! Por isso nossos livros-chave para o Laboratório de redação são “Truques da escrita” de Howard S. Becker, “Quarto de despejo”, de Carolina de Jesus e “Cartas a uma negra” de Françoise Ega. A explicação para esse trio fica para um próximo post!

Boas aulas, pessoas queridas!

PS: Qual o objetivo disso tudo? Ao longo do semestre, essa aula consolida os critérios dos próprios alunos para revisão dos textos deles mesmos. Na prática, eles se dão conta de que precisam revisar muito para atingir os seus ideais de escrever bem.

Projeto “Como escrever um texto em 8 meses” — Conforme prometi no Instagram, vou escrever sobre o processo de produzir um texto acadêmico que preciso entregar daqui a 8 meses. Tem que ser algo inédito e decente. Começo esse diário de escrita com meu problema inaugural: sobre o quê devo escrever? Sou eu que decido o tema. Já consultei filhos, colegas, estantes e ainda não sei. Resolvi seguir a máxima que o Ju tanto gostava: escrever para saber o que eu gostaria de escrever se estivesse escrevendo! (Foi mais ou menos o que disse Marguerite Duras, H. Becker, Anne Lamott e um monte de gente que escreve sobre escrita.) Vou tentar seguir a ideia de escrever 300 palavras por dia, conforme disse que fazia no post Escrita Diária. (Às vezes me pergunto quem era essa Karina de 2017?) Prometo que volto semana que vem para contar.

Sobre a proposta das aulas lúdicas: Esse post é continuação da Parte 1. Mais ideias de aulas lúdicas aqui.

Sobre a ilustração: Apenas inverti a ilustração do post Parte 1 (a explicação está lá). Aproveito para contar que era assim que Leonardo Da Vinci (1452-1519) escrevia em seus cadernos. Os alunos acharam que eu estava brincando, mas é verdade, como explica esse simpático blog.

Você acabou de ler “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-40VAcesso em [dd/mm/aaaa].


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Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)

Para animar, resolvi adaptar uma antiga aula lúdica para começar bem o semestre com minha turma de Laboratório de redação. Como na aula “brincando de pesquisar”, o objetivo era conhecer os alunos. Dessa vez, porém, foquei nas suas experiências com leituras e escritas, antes e depois da faculdade.

Material necessário: Algumas folhas coloridas em quatro cores diferentes. Comprei um pacotinho de A4 na loja Caçula da Rua Buenos Aires, perto do IFCS. Algo parecido com esse aqui.

Dinâmica: Como foi feita a aula:

Avisos — As respostas são anônimas; não é para nota; não tem certo ou errado; conta como participação. Pedir que tentem ser bem específicos nas respostas.

Preparação — Pedir para alguns alunos ajudarem a cortar o papel A4 papel em 8 pedaços, até que todos da turma tenham um pedaço de papel de cada cor.

Quadro — Escrever as cores e as perguntas no quadro (ver abaixo).

Alunos — Pedi que os alunos respondessem nos pedaços de papel colorido. Cada papel recebe duas respostas: positivas + e negativas -. Alguns alunos responderam no mesmo lado; outros escreveram mais e utilizaram frente e verso. Não importa. Não é necessário copiar as perguntas.

Amarelo — Qual é a sua lembrança de escrita mais positiva antes de entrar na faculdade? E a mais negativa?

Rosa — Qual é a sua memória de leitura mais positiva antes de entrar na faculdade? E a mais negativa?

Verde — Como foi sua experiência de escrita mais positiva durante a faculdade? E a mais negativa?

Laranja — Qual a sua experiência de leitura mais positiva durante a faculdade? (De quais autores você é fã e por que?) E a mais negativa? (De quais autores você é “hater” e por que?)

Pote para depositar a resposta — Por conta de outras dinâmicas, tenho uma caixa preta com um buraco no meio que utilizei para ir coletando os papéis com as respostas.

Organização por cores e grupos —Todas as respostas coletadas foram misturadas na caixa. Em seguida, colocamos o monte de papéis no chão e separamos por cores. Dividimos a turma em quatro grupos e cada um ficou com uma cor. Eles acabaram chamando os grupos de “times”. Ficamos com aproximadamente 8 alunos por time/cor. Nesse momento é importante que eles movimentem as cadeiras para sentarem-se juntos de seus grupos.

Debate intra-grupos — Cada grupo leu todos os papéis da sua cor e fez uma análise qualitativa das respostas positivas e negativas. Depois, cada aluno do grupo escolheu uma resposta significativa da sua cor para ler em voz alta.

Exposição e debate com a turma — Organizamos as cadeiras em círculo para que a turma toda pudesse se escutar, mantendo os integrantes de cada time próximos uns dos outros. O resultado da análise de cada cor foi apresentado para a turma por um aluno escolhido pelo grupo, sendo essa explicação depois embasada com as leituras das respostas escolhidas para serem lidas. Seguimos a ordem dos grupos acima: amarelo, rosa, verde e laranja.

Análise das respostas

Time Amarelo — Minha lembrança mais positiva de escrita foi… Exemplos: “quando escrevi meu nome pela primeira vez na escola”; “quando escrevi meu nome ensinada por minha irmã”; “quando fiquei entre os melhores em um concurso de redação”; “quando escrevia crônicas em um projeto extracurricular”; “quando fiquei fascinada pela caligrafia da professora”; “minha primeira carta ao Papai Noel”; “quando aprendi inglês com minha mãe”; “quando escrevi meu primeiro poema de amor”; “quando escrevia cartas para meus primos”; “quando me sentia livre para escrever em meu diário”; e “quando utilizava materiais novos comprados pela minha mãe”… A mais engraçada foi “a primeira palavra que escrevi foi OVO”. 😀 Uma resposta comovente dizia que “na turma de alfabetização, quando todos liam as sílabas em conjunto, sentia um sentimento de comunhão”.

Foi emocionante ter acesso às memórias afetivas relacionadas a escrever, revitalizando a ideia de que essa já foi uma prática prazerosa para eles.

Se as lembranças positivas são diversas e específicas, as negativas relacionam-se a experiências de avaliações ruins. Ser julgado traz medo e insegurança: notas baixas ou “vermelhas”, letras “feias”, erros bobos, falhas de ortografia, comparação com colegas, desespero na redação do Enem, pressão dos pais.

Time Rosa — As memórias de leituras positivas antes de entrar na faculdade trouxeram autores como Machado de Assis, Drummond, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Carolina de Jesus, Fernando Pessoa, Victor Hugo, Salinger, Saramago… Os alunos mencionaram romances, suspenses, biografias, clássicos, escritas feministas ou Lgbt, quadrinhos, ficção mágica, não-ficcção histórica, poesia. A resposta mais aplaudida foi: “Ler meu nome na lista de aprovados de um exame”. E uma das mais tocantes foi a da estudante que lembrou do pai lhe ensinando o poema “E agora José?” de Carlos Drummond de Andrade.

As leituras mais lembradas como negativas eram livros específicos (tipo, não gostei de “O mago”) e aquelas feitas por obrigação, como manuais, livros famosos (tipo “O pequeno príncipe”) ou clássicos indicados pela escola. Foi interessante um estudante que mencionou ter odiado Machado de Assis no ensino fundamental e, do outro lado do papel, escrever que depois este se tornou seu escritor preferido. Como na pergunta anterior, aqui também apareceu o trauma gerado por métodos de disciplina rígidos e ríspidos.

(Tá muito grande, então, continua na Parte 2! Spoiler: a análise do time laranja foi a mais importante, por isso o post se chama Fã ou Hater)

Sobre a proposta das aulas lúdicas: Dizem por aí que toda antropóloga é uma fofoqueira profissional. Assumo o título! Já escrevi que virei fotógrafa, jornalista, pesquisadora, professora e desenhista porque gosto de gente. Amo detalhes, nomes, histórias, gostos e desgostos. Além do mais, como professora, tenho um semestre pela frente, com o desafio de sair viva no final. Espero contagiar meus alunos nessa disciplina, já que são eles os professores do futuro. Mais ideias de aulas lúdicas aqui.

Sobre a ilustração: Fotografei quatro pedacinhos do exercício com o celular e editei no Photoshop para ficar neste formato. O scanner não conseguiu pegar as cores fosforecentes dos papéis. Então utilizei o app CamScanner para capturar as imagens. Dá para utilizar na versão gratuita e é útil para transformar qualquer pedaço de papel em documento legível. Inclusive transforma foto em texto.

Você acabou de ler “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-40h. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Quinze dicas para ajudar a ler textos acadêmicos (ou não)

“Quando meu filho estava com oito meses, podia-se dizer de verdade que ele devorava literatura. Se alguém lhe dava um livro, mastigava-o.” (Anne Fadiman)

Quem se identifica com a ideia de “devorar” livros levanta a mão! Para mim, faz todo sentido. Quando uma obra me conquista, sinto que entro num espaço de prazer, como se estivesse comendo as páginas, de tão boas. Só que nem sempre é assim…

Um dos maiores desafios da vida acadêmica é a quantidade de leituras de que precisamos dar conta. Gostaríamos de ler mais do conseguimos e, pior, nem sempre podemos decidir o que vamos ler. Faz parte: alunos têm que passar pelas bibliografias que os professores selecionam; docentes precisam encarar leituras essenciais para suas pesquisas e ainda monografias, teses, dissertações e trabalhos de curso.

Como dar conta de ler tudo? Listo abaixo algumas dicas a partir da minha experiência e das dificuldades pelas quais passei. Foi mais ou menos isso que aprendi:

1) Prazer de ler – Para saber se estou na área de pesquisa certa, sempre me pergunto: “sinto prazer de ler os textos que estou lendo?” Muitos alunos me escrevem em dúvida sobre qual caminho ou tema seguir. Minha primeira sugestão é se questionar: sobre o quê você realmente gosta de ler? Porque, uma vez escolhida a área, haverá uma montanha de textos para dar conta. Foi assim que descobri meu amor pela antropologia, depois de passar por design, publicidade e jornalismo: quando me deparei com textos como o “Pessoa, tempo e conduta em Bali”, de Clifford Geertz, percebi que queria mais!

Só que dentro de uma área existem centenas de recortes possíveis. Inclusive, isso me lembra um episódio vergonhoso da minha vida acadêmica, quando fiz uma pesquisa numa universidade no exterior. Apesar de toda a alegria de ter recebido o auxílio para esse trabalho, passei boa parte do meu tempo lendo livros e fuçando bibliotecas sobre outro assunto. Pois é. Isso foi há muitos anos! Já fiz relatório, publiquei, prestei contas, tudo certinho. Só que até hoje me sinto culpada por ter me dedicado menos do que deveria às leituras apropriadas. Demorei a perceber que aquela “fuga” era um sinal de que estava na hora de mudar. (Voltarei a esse tema adiante.)

2) Organização do calendário – Ao começar um semestre, pego um calendário dos próximos meses e assinalo todos os compromissos, como aulas, defesas, bancas, congressos etc. Pesquiso e marco os feriados. Feito isso, tento calcular qual será o volume de leitura de cada etapa (por semana). Se eu tiver períodos de sobrecarga ou de eventos, tento compensar programando menos textos nas aulas da época.

Sei que é difícil prever tudo isso, mas essa lista é para lembrar de tentar. Ao aceitar participar de uma banca, por exemplo, tento aliviar a carga de leitura daquela semana. Ah, Karina, isso não existe… Gente, não é porque não existe que não devemos querer que passe a existir. Já vi várias vezes colegas chegarem em bancas sem terem lido direito o material do candidato; e eu mesma já cheguei numa aula sem me sentir preparada. Então vale estarmos atentas: somos humanas e nossa capacidade de leitura é finita!

3) Calcule sua capacidade de leitura por número de páginas – Uma das dicas mais importantes é aprender quanto tempo levamos numa leitura. Aprendi fazendo assim: ao começar um texto, anotava o horário de início no alto da página. Seguia lendo até a primeira interrupção, quando escrevia novamente o horário da pausa, mesmo que fosse para ir ao banheiro ou buscar um copo d’água. Fui fazendo isso em vários os textos até chegar numa média de velocidade para cada tipo de texto. Por exemplo: leituras em português ou em língua estrangeira; não-ficção ou ficção; texto obrigatório x texto complementar; texto em PDF x texto em papel; livros x artigos; leituras x releituras; trabalhos de alunos, dissertações ou teses. Cada material desses traz pequenas alterações no nosso rendimento. Eu não medi todos eles (não sou tão obsessiva assim!) A ideia é chegar numa média, numa medida realista da nossa velocidade. Por exemplo, no meu caso, costumo ler de 20 a 30 páginas por hora. (Pode ser menos ou mais a depender dos fatores envolvidos, como explico abaixo.)

4) Calcule sua capacidade conforme o objetivo da leitura – Outra dica importante é entender quanto tempo você leva para ler um texto sobre o qual deverá falar, apresentar seminário ou dar uma aula sobre. Nesses casos, eu, pelo menos, preciso sublinhar, anotar e, se possível, fazer um fichamento. Então não adianta utilizar as medidas de leitura do item 3. Eu sei, a gente insiste em achar que vai dar, mas não dá. E dá-lhe virar noite ou chegar na aula insegura porque não fez o trabalho direito. Melhor fazer um planejamento pragmático. Para citar o meu caso, fui preparar uma aula sobre um texto de apenas 22 páginas (que já tinha lido antes): levei 1 hora e meia entre reler e fichar os principais pontos para falar.

5) Calcule sua capacidade de leitura conforme o período do dia ou da semana – Nossos corpos têm ritmos distintos e níveis de concentração muito variáveis. Sou do tipo que prefere varar a madrugada. Nunca entendi quem dorme cedo e coloca o despertador para as 5 da manhã para terminar de preparar ou ler algo! Simplesmente não funciono nesse horário, mas tem gente que sim. Outra coisa muito idiossincrática minha: às vezes prefiro acumular um volume maior de leituras para sábado e domingo, do que ler um pouquinho todos os dias (principalmente trabalhos monográficos). Depende de cada um encontrar o seu jeito; e não tem jeito certo, desde que você termine a tarefa a tempo sem se esgotar.

Depois de medir uma participação em banca de doutorado (tese grande), cheguei à conclusão de que gastei quase 6 dias inteiros de trabalho, entre leitura, preparação da arguição e a defesa em si. Sim, seis dias rolando com a tese e as demais tarefas de dona-de-casa, mãe e professora. É muito! Então, toda vez que me convidam para uma banca, já tenho uma noção bem realista do tempo que vai me tomar. (Quando o trabalho é bom, tudo ótimo, aprendemos bastante… Mas quando é ruim, que sofrimento. No fundo, a grande medida para tudo isso é a qualidade do texto. )

6) Não dá para ler tudo – A vida é feita de escolhas, né? Essa é bem clichê mas a gente insiste tanto nesse erro que vale apontar: não dá para ler 1500 páginas por semana! E digo isso para alunos, que se sentem culpados porque não deram conta; e repito para os professores que (ainda) fazem seus programas de curso como se esquecessem que os alunos têm outros cursos para atender. Para ler 1500 páginas por semana, a pessoa teria que ler 11 horas por dia, de segunda a domingo (média de 20 páginas/hora). Quem tem condições de fazer isso? Eu até posso ler (e leio) um romance de 900 páginas numa semana livre. Mas isso se for uma boa ficção e eu estiver de férias! (Mesmo assim, varia. Por exemplo, li em seis dias Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves; mas levei várias semanas para ler Middlemarch, da George Eliot. Ambos são imensos e adoráveis, mas são narrativas com ritmos diferentes.)

Sim, sei que alguns alunos ainda precisam aprender a se concentrar e a priorizar a tarefa da leitura. Ler para uma aula é parte do trabalho de ser estudante. Não desanimem, tá? A velocidade melhora com a prática e conforme vamos nos familiarizando com a linguagem acadêmica e com o vocabulário conceitual da área em que estamos inseridos. E às vezes o problema não é seu: é que o texto é ruim mesmo! Saber identificar essa diferença é um aprendizado. Tenham paciência.

Pelo lado dos professores, porém, vejo que alguns programam textos demais por aula. Isso pode ter motivos válidos, como apresentar um curso bem completo com o “estado da arte” de um tema. Mesmo nesses casos, o docente, na minha opinião, deveria calcular uma quantidade de texto obrigatória razoável: em torno de 100 páginas por semana numa pós-graduação que exige que o estudante faça três ou até quatro disciplinas por semestre. O restante pode ser indicado como leitura complementar. Alguns professores esquecem que eles leram aqueles textos ao longo de muitos anos, e não em poucos dias, como estão exigindo dos alunos. E tem os que montam programas imensos por vaidade mesmo. Sem comentários…

7) Tenha um kit de leitura (acessórios, bebidas e comidas) – Sou dessas que não consegue ler sem óculos e uma lapiseira na mão. Esse é meu kit-mínimo. Não importa se estou lendo romance, livro acadêmico, artigo, até PDF: preciso sublinhar, marcar, anotar. Minha companheira preferida é uma lapiseira Pentel 0.7, com grafite pelo menos 2B — se tiver 3B, melhor. Passei a comprar cor-de-rosa-choque porque as crianças não gostavam. Mas isso é passado. Hoje a Alice tem uma igualzinha e Antônio já me roubou várias. A solução foi enrolar washi tape para marcar a minha. 😉

Tenho um pequeno sistema de códigos pessoal de anotação, com carinhas (sorrindo, chorando, com raiva e de boca aberta), coração, pontos de exclamação e um sinal para quando encontro erros tipográficos. Sempre acho que vou escrever para a editora para avisar do erro, mas depois a preguiça me vence. Outra coisa que faço, quando gosto muito de uma frase ou expressão: reescrevo com a minha letra no alto da página, colocando entre aspas, só para destacar bem ou porque pode ser algo para trazer para o blog. Não uso caneta mas adoro rever um livro cheio de anotações. Quando não tem, é porque não gostei ou li correndo.

Além da lapiseira, costumo ter um lápis-borracha e um caderno ou bloquinho de rascunho. Outra coisa que não pode faltar: post-its de vários tipos. Quando já sei que vou dar aula sobre o texto, marco páginas com trechos essenciais para ler com os alunos. Em livros que não posso anotar, colo post-its maiores com anotações sobre os trechos que pretendo utilizar depois. Já tive suportes de leitura, desses que mantém os livros inclinados na mesa, mas o meu preferido quebrou e nunca mais consegui um igual (era cheio de regulagens, super leve, perfeito).

Finalmente, tem a parte sobrevivência para me manter acordada: comes e bebes! Copo d’água, chá, mate, refrigerante, suco, água com gás, vale tudo né? (Quem leu o post sobre meu TCC, sabe que ele foi feito à base de coca-cola diet. Tomei tanto que nunca mais! Café não está na minha lista porque não tomo, me perdoem a falha.) De comidinhas, prefiro todas que sejam pequenas e picadas, para durarem mais: pipoca, frutas cortadas ou uvas, passas, castanhas, biscoitos, chocolate amargo, até semente de abóbora. Serve qualquer coisa que me mantenha mastigando por um tempo, com o cuidado de não ser muito trash para não dar dor de estômago. Uma época, fiquei com mania de comer torrada seca (de pacote) picada em pedacinhos para render mais. Hoje em dia, costumo comer coisas sem glúten e continuo viciada no mate solúvel (sem açúcar); mas também tomo bastante chá, se estiver frio.

8) Prepare e varie seu local de leitura – Esse post começou inspirado no desenho do início: eu lendo no quarto da Alice com meu gato Charlie. É o único cantinho da casa onde tem rede e ainda bate o sol da manhã. Tornou-se um dos meus locais preferidos para leituras longas de trabalho. Na sala tem um cantinho bom perto da janela. Pra mim, o importante é ter boa iluminação, pois não enxergo bem, nem de perto, nem de longe. Por isso, reforcei as luminárias e lâmpadas em todos os cantos da casa onde pude. Meu sonho ainda é melhorar essa parte e, principalmente, no futuro, ter uma varanda.

Fora isso: uma leitura longa pede apoio para os pés, ventilador no calor, cobertor no frio! Se bater o sono, vale sentar numa mesa de trabalho mais formal ou até ler em voz alta. Mesmo mudar de lugar dentro de casa, ou ler num outro local ajuda. No meu prédio tem um espaço que dá para ler no terraço. Não vou sugerir que vocês leiam em cafés e bancos de praça porque não estamos no Instagram, né? Pelo menos no Rio de Janeiro, sei lá, é bem surreal: se for silencioso, é caro; se for barato, é barulhento; se for na rua, é sujo ou num cenário de desespero social. Talvez na praia ou em uma biblioteca dê jeito. Vocês conseguem?

9) Ler em papel ou PDF – Sou totalmente adepta da leitura em papel. Ler em telas é uma tortura, seja pelo cansaço ocular, seja porque não consigo memorizar os conteúdos. Computador, notebook, tablets, Kindle: todos me trazem a mesma dificuldade. Não sinto o texto, não me aproprio das palavras, não rendo.

Só que preciso ler PDFs mesmo assim! Na área acadêmica é praticamente impossível evitar. Quando não tem jeito, utilizo o aplicativo Books do Ipad e uso a canetinha para destacar ou anotar. Se for uma leitura importante, faço um fichamento à parte. Sobre o Kindle, não tenho, mas utilizo o app para Android e Ipad. Além dos preços mais baixos e do acervo de livros gratuitos (domínio público), a grande vantagem é a função de reunir todas as nossas marcações num arquivo à parte. Isso já me salvou para fazer bons resumos e selecionar trechos para artigos.

10) Ler livros, capítulos ou artigos – Assim como prefiro papel, também sou fã de ler livros inteiros ao invés de capítulos ou artigos. Semestre passado inclusive, dei um curso de graduação cuja bibliografia obrigatória era o volume todo do Truques da Escrita, do Howard S. Becker. As demais referências eram complementares. Os alunos adoraram. A maioria me disse que nunca tinha lido um livro acadêmico do início ao fim na faculdade!

Sei que essa não é uma proposta fácil, nem factível em todos os tipos de cursos. Mas reforço a ideia que defendi acima: não é porque uma prática não ocorre que não devemos desejar que passe a ocorrer. Os textos que mais marcaram minha vida foram livros que li integralmente. Foi esse tipo de leitura que me formou e é isso que desejo para minha vida e para a dos meus colegas e alunos.

11) Renove suas leituras com resenhas, entrevistas, ficção etc. – Um truque para entender melhor as ideias de um autor: ler resenhas sobre os seus livros e entrevistas que ele tenha dado em revistas acadêmicas. É impressionante como esses tipos de textos ajudam a encaixar um autor com suas reflexões e conceitos. Autores que escrevem difícil, às vezes têm um jeito de falar bem claro! Da mesma forma, uma boa resenha sobre um livro, pode nos trazer informações fundamentais sobre o contexto da obra, sua inserção numa área de pesquisa e suas principais contribuições teóricas e empíricas. Ler entrevistas e resenhas de forma aleatória é também um jeito divertido de buscar novos temas e abordagens para nossa pesquisa quando estamos enjoados ou empacados.

A leitura de textos de ficção que se aproximem (ou não) do nosso tema (por área geográfica, temática, histórica etc.) pode ser outra forma de sacudir nossas ideias. No caminho acadêmico, cabe ampliar o leque de autores, saindo da lista tradicional da sua disciplina. Tenho feito isso nos últimos anos e as descobertas são muitas. No sentido inverso também: reler clássicos que você leu quando ainda estava imatura traz supresas. Volta e meia me supreendo com releituras de textos que achava datados ou de pequena relevância. Isso ocorre tanto porque não estávamos preparados para entendê-los quanto porque, com o tempo, nossas perguntas e referências mudam.

12) Registre uma lista das suas leituras – Essa é uma dica bem simples: anote tudo que você lê! Não precisa baixar aplicativos sofisticados. Atualmente, utilizo uma planilha simples do Google, com número, ano, mês, autor, título, editora, origem, estrelinhas e um espaço para observações. É uma boa forma de lembrar do que li e do que gostei nos últimos meses e anos. Também é um jeito de registrar os PDFs que acabam perdidos em vários dispositivos diferentes.

Divido a lista por ano e a linha superior é a mais recente. Às vezes deixo em vermelho o que estou lendo (se estou com mais de uma leitura simultânea). Aproveito também para anotar os empréstimos com fundo em amarelo para não deixar de cobrar.

Nas primeiras linhas da minha tabela, deixo em cor cinza os autores e livros que tenho vontade de ler mas ainda não comecei ou não tenho. Alguns ficam morando ali durante anos e acabo apagando. Mas tem horas que essa listinha é um lembrete fundamental do que já tenho ou do que quero comprar.

Nessa planilha, ficam registradas todas as leituras (ficção, não-ficção; acadêmicas etc.). Só não anoto releituras para dar aula, pois são muitas e tornariam a lista super confusa.

13) Leitura dinâmica para situações de emergência – Aprendi essa dica com um professor que admiro muito. Mesmo sendo um gênio, ele teve a generosidade de me dizer que também não dava conta de ler tudo.

A sugestão era mais ou menos assim: “Karina, quando você não tiver mais tempo, pelo menos ‘sinta o cheiro’ do texto.” Fiquei olhando com cara de pastel: “Cheiro? Como assim?” Ele explicou: “Você vai folheando o livro, página por página, lendo os títulos dos capítulos e das seções. Se possível, leia a primeira linha de cada parágrafo. Isso já vai te dar uma ideia do que o autor quis dizer.”

Lógico que não é o ideal e que esse método pode gerar percepções erradas, mas eu estaria mentindo se dissesse que nunca fiz isso. Claro que sim. E também já apelei para aquele velho truque de ler só a introdução e a conclusão. Recomendo? Não. Mas às vezes a vida é assim, e a gente faz o que dá. 😉

14) Crie um grupo de estudos ou tutoria entre colegas – Essa foi sugestão de um amigo-professor que vem se deparando com os “alunos da pandemia”. A vida dos estudantes já era difícil antes da Covid-19, agora então… Muitos chegam na universidade depois desses dois anos de ensino online (seja no Ensino Médio, seja nos primeiros períodos da faculdade) se sentindo sem base para compreender as leituras e as aulas presenciais, mais densas. Uma forma de compensar isso pode ser criar grupos de leitura entre os colegas da própria turma ou com alunos mais experientes que possam atuar como tutores. Embora o exemplo seja entre alunos, eu mesma tive um grupo de leitura com colegas durante a pandemia. Recomendo.

15) Tenha um gato ou um cachorro pra ler contigo – Sei que esse conselho não deveria estar nessa lista, mas eu precisava de quinze itens, né? Cá entre nós, para quem já curte gatinho ou cachorro em casa: tem coisa melhor do que ler com um bichinho no colo? Eles são a melhor companhia do mundo.

E chegamos ao fim dessa listinha! Lembraram de algo que esqueci? Escrevam nos comentários por favor. Sou apaixonada por livros e pelo prazer de ler, a tal ponto que, durante uma boa parte da minha prática artística, eu só desenhava pessoas lendo!

Obrigada pelo mar de mensagens de carinho e apoio que vocês têm me mandado por aqui e pelas redes sociais. Tem dias que sou só lágrimas, melancolia e saudades, mas há outros em que sinto que vou sobreviver. Consegui ler, escrever e desenhar um pouquinho. Já significa muito.

Boas leituras para todos. Que vocês tenham amor, saúde e paciência. Até o próximo post! ♥

Sobre a citação: A epígrafe do post é do livro “Ex-Libris: confissões de uma leitora comum”, da Anne Fadiman. (Tradução de Ricardo Quintana, editora Zahar, 2002). Adoro esse livro. O meu original, todo anotado, se perdeu em algum empréstimo. Há uns anos atrás, acabei comprando outro mas ainda preciso reler para resublinhar tudo de novo. Apesar disso, nunca esqueci a parte em que ela conta sobre a mania do filho de comer os livros! Comia mesmo, principalmente se tivesse desenho de comidas. 😀

Sobre os desenhos: O desenho que abre o post foi feito no meu caderno-diário em tempos bem mais felizes (26/01/2022). Os demais desenhos foram feitos hoje (23/6) para o post, inspirados numa coleção de imagens sobre livros que junto há muitos anos. Alguns fazem referência aos Simpsons, como vocês podem reconhecer; a menina com a pilha de livros é inspirada num desenho do Quentin Blake, que amo. A menina estudando com um gatinho no colo fiz em homenagem a uma conta do Instagram que adoro seguir: @cats.friedaandhenry.

O caderno que utilizo como diário é um A5 espiral da Papel Craft, capa dura com elástico. (O link que coloquei é só um exemplo; a estampa do meu não tem mais.) É meio caro para um caderno, mas ganhei de presente e dura bastante. Tem um bom acabamento, 90 folhas e bom espaçamento entre as linhas. Apesar do papel ser 75g, consigo desenhar com canetinha e a cor não vaza para o outro lado. No dia-a-dia, para listas e organizações, uso um caderninho A5 da Tilibra de 80 folhas que custou R$12,50! Quando quero colocar algum desenho nele, faço num papel à parte e colo na página. Atualmente, o meu tem sido esse aqui:

Para esses desenhos, utilizei canetinha Pigma Micron azul 0.1 nas linhas, e marcador Tombow n. 451 azul claro. O primeiro desenho era só um registro pessoal, sem rascunho, sobre o “melhor do meu dia”. Segui o estilo nos desenhos de hoje, desenhando de forma rápida, sem usar lápis antes. Escaneei tudo e separei as imagens no Photoshop.

Você acabou de ler “Quinze dicas para ajudar a ler textos acadêmicos (ou não)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2022. “Quinze dicas para ajudar a ler textos acadêmicos (ou não)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3WN  Acesso em [dd/mm/aaaa].


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A dádiva daquele instante – Torto Arado

“Diante dos meus olhos, vi minha mãe erguer sua mão direita e segurar com força o braço que avançava rompendo o ar para lhe atingir. Bastou esse gesto para que cessassem os urros e a cólera da mulher, e um fluxo de serenidade se instaurasse entre os presentes.” (Itamar Vieira Jr., Torto arado, p.59)

Li Torto arado em fevereiro de 2021. Ah, como sonhei em ser segurada pelos braços dessa mãe… Era em mim que ela derramava seu “milagre de energia”, serenando o mundo, por dentro e por fora.

Foi na época em que vivíamos a segunda tsunami pandêmica, falta de vacinas e o sufocamento em Manaus. Não preciso explicar, vocês sabem. Na versão particular desse pesadelo, tive um descolamento de retina e espiralei para aquele tipo de doença que todos os médicos diagnosticam como “stress” e te dizem para “relaxar”. Ah, tá.

Itamar Vieira Jr. chegou fazendo a mágica dos grandes escritores: trouxe paz e esperança, força e suavidade, susto e sossego. Fez surgir pessoas inteiras, complexas, encantadas. Lembrou-me de certezas que eu já julgava impossíveis — de que existem o bem-querer, o barro, o estudo, o rio e os milagres.

“O desalento que se abateu sobre todos com a prolongada estiagem contrastava com o sopro de vida que tudo aquilo poderia ser para nós.” (p. 79)

Essa frase traduz, pra mim, a vida seca e fértil de 2021. Foi ano de doença e morte, de ciência e vacina. Pudemos chorar de ódio, medo e dor, mas também de emoção, conforto e alegria.

Quem não derramou lágrimas na primeira dose? Eu e a moça do posto choramos. Até então, prevalecia o desespero, “como se o arado velho e retorcido percorresse as minhas entranhas, lacerando a minha carne” (p.127).

Torto arado trouxe uma energia que estava ali e não se via. Nas palavras de Zeca Chapéu Grande:

“Se o ar não se movimenta, não tem vento. Se a gente não se movimenta, não tem vida (…).” (p. 99)

Pensei na necessidade de me mexer. A terapeuta falou disso. A energia está dentro da gente. Ok, falta um mapa, mas é melhor do que o “relaxa” dos médicos. O único movimento em que eu conseguia pensar nessa época era fugir. Só que não dava, né? Pra onde? Como dizem sobre o lixo, não existe o fora no planeta terra.

Lembrei dos meus antepassados que escaparam da falta de perspectiva e das perseguições religiosas. Pensei no meu avô que ainda por cima fugiu sozinho. “O sangue do passado corre feito um rio”, escreve Itamar, sobre veias abertas há mais de 500 anos. Só que a fuga aqui não é medo: é coragem. As personagens do livro têm aquela força heroica que nos falta:

“Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.” (p. 230)

É tão bom que Torto arado seja novo e traga verdades tão antigas, como a história que conta: “triste mas bonita”. É tão reconfortante que possamos ler e imaginar possibilidades; movimentar não apenas o corpo mas os pensamentos na direção de algo bom:

“Juntas fecharam os olhos e compartilharam a dádiva daquele instante.” (p.258)

Os livros tiveram esse efeito sobre mim em 2021: seguraram minhas mãos e me enlaçaram em seus braços, como Bibiana faz com Belonísia na cena citada acima. Foram 68 volumes; 68 dádivas a me trazer para o instante.

Coisas:

♥ Livro citado: Torto arado, de Itamar Vieira Junior. Editora Todavia, 2019. (Desenho da capa da talentosa artista Linoca Souza).

♥ Lista simpática do The Guardian de 100 coisas para melhorar a vida um pouquinho em 2022.

♥ A dica acima foi do Instagram da Helô Righetto. Além de stories sobre Londres, caminhadas e plantas, a Helo faz ótimas recomendações de livros (reunidas na #HeloReads). Em 2021 ela até gravou (com a Rapha Perlin) um simpático podcast de 8 episódios sobre Jane Austen.

Sobre o desenho: Desenho feito com canetinhas Pigma Micron 0.05 e 0.1 no verso de uma folha do bloco A4 XL Aquarelle Canson (capa turquesa). Cores feitas com aquarela e lápis de marcas diversas. Quis imaginar as irmãs saindo de dentro do livro, talvez para mostrar o quão vivas elas me pareceram em suas páginas. Escaneei na impressora Epson L396 (que não recomendo pois vive dando problema) e depois editei um pouquinho no Photoshop. Não consegui acertar as cores do original na tela, mas segue assim mesmo. Até porque esse blog é um espaço de amor; e amor não combina com vaidade, concordam? ☼

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2022. “A dádiva daquele instante – Torto Arado”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3To. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Agosto/2018 – Mulheres que lêem são perigosas

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Pessoas queridas, bom dia! Aí vai o calendário de agosto, uma homenagem ao nosso amor pela leitura. Não sou de ligar tanto para aniversário (dia 21), mas dessa vez resolvi desenhar algo que amo para comemorar.

Antes que eu esqueça: o .pdf para imprimir!

Os desenhos foram inspirados no livro Women who read are dangerous, que ganhei de uma amiga super generosa. ♥ A capa já apareceu aqui no blog num post anterior. As imagens internas são pinturas, desenhos e fotografias.

Não há tantas figuras de corpo inteiro, como a Marilyn Monroe lendo de biquíni, que no calendário ganhou um vestidinho (é a segunda, da esquerda pra direita, na parte de baixo). Várias pinturas de mulheres nuas aparecem no meu desenho em versões vestidas. Para a grande maioria, tive que inventar o corpo, as roupas e os bancos, cadeiras e sofás em que elas se apoiam. Também só me inspirei nas imagens em que as mulheres estavam efetivamente lendo, e não apenas com um livro nas mãos (entre essas, uma das mais lindas, é do Van Gogh). Outra adaptação foi fazer mulheres negras, que, assim como as mulheres-artistas, estão quase ausentes da obra.

Aqui vai a listinha completa das imagens que me ajudaram — para vocês poderem comparar com a versão desenhada no calendário:

Pieter Janssens Elinga – Woman Reading (1668-70)
Jean Raoux – The letter (1720)
Jean-Etienne Liotard – Marie Adelaide of France (1753)
Gustav Adolph Hennig – Girl Reading (1828)
Carl Christian Constantin Hansen – The Artist’s Sister (1826)
Sir Edward Burne-Jones – Portrait of Katie Lewis (1882-86)
Jean-Jacques Henner – Woman Reading (c.1880)
James Tissot – Stillness (s/d)
Peder Severin Kroyer – Rose Garden (1893)
Carl Larsson – Karin Reading (1904)
Vilhelm Hammershoi – Interior with a Woman Reading a Letter (1899)
Albert Marquet – Standing Female Nude (1910)
Robert Breyer – Woman Reading (1909)
Félix Vallotton – Woman with Yellow Necklace Reading (1912)
Gabriele Münter – Woman Reading (1927)
Duncan Grant – The Stove [Angelica Bell] (1936)
Vanessa Bell – Amaryllis and Henrietta (1952)
Cagnaccio di San Pietro – Portrait of Signora Vighi (1930)
Aleksandr Aleksandrovich Deineka – Young Woman with Book (1934)
Edward Hopper – Hotel Room (1931)
Theodore Miller – Lee Miller and Tanja Ramm (s/d)
Eve Arnold – Marilyn Reading Ulysses (1952)

Desses originais, minhas preferidas são as de Ducan Grant e Vanessa Bell, casal de artistas, ela irmã de Virginia Woolf. Também amei a obra de A. A. Deineka e o desenho da Gabriele Münter.

Desculpem o excesso de links! É para vocês terem um gostinho do livro… Ainda não li a introdução de Karen Joy Fowler, mas em breve conto aqui.

7 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-hilárias-ou-dignas-de-nota da semana:

♥ Li recentemente e adorei: Mamãe & Eu & Mamãe, da Maya Angelou (Rosa dos Tempos, 2018).

♥ O que estou lendo: J-B, Debret, historiador e pintor, de Valéria Lima (Ed.Unicamp, 2007). Achei por acaso na Livraria da Travessa e estou amando. Que maravilha de trabalho! Na próxima vida quero ser historiadora da arte.

♥ Acompanhando: a ótima série no blog da Sarah Toledo sobre livros escritos por mulheres.

♥ Li no celular e adorei: a bem-humorada história do casal Kana e Mateusz Urbanowicz, artistas vivendo no Japão, ela japonesa, ele polonês: 47 mini episódios em quadradinhos, por Kana Urbanowicz.

♥ Onde tenho navegado: Public Domain Review, que manda uma simpática newsletter. Outro dia publicaram essa lindeza de obra botânica.

♥ O que amaria ganhar de aniversário: But I Really Wanted to Be an Anthropologist, da divertida Margaux Motin!

♥ Onde tenho postado — Uma das melhores coisas de julho foi ter feito a mudança de duas estantes de livros do trabalho para casa. Eram obras que há muito tempo eu queria ter mais perto. Com a ajuda do Antônio, fizemos uma enorme reorganização e separamos bastante coisa para doar. Vou postar essas doações lá no Stories do Instagram (onde também venho mostrando as prateleiras reorganizadas — vou mostrar a de mulheres em breve). Meu perfil para quem quiser acompanhar: https://www.instagram.com/karinakuschnir/

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Sobre os desenhos: Primeiro fiz um rápido esboço a lápis de todas as mulheres e livros. Depois passei canetinha de nanquim permanente Pigma Micron 0.05 e colori com lápis-de-cor Polychromos, da Faber-Castell. Tentei usar uma paleta com poucas cores. Alguns pequenos detalhes fiz com canetinhas Pigma Micron de cores diversas. No final, sombreei com lápis-de-cor cinza e azul claro. Minhas preferidas são essas duas deitadinhas. A de cima é totalmente inventada e baseada no meu jeito de ler antes de dormir, vestindo uma calça de pijama bem velhinha que amo. A de baixo é inspirada na pose da imagem de Henner (link acima).

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Há algum tempo venho pensando no que eu poderia fazer com esses desenhos dos calendários mensais. Cheguei a pensar em redesenhá-los e imprimi-los na forma de cartões, mas quem ainda usa cartões de papel, além da minha mãezinha? O que vocês acham? Alguém gostaria de prints dessas imagens em resolução melhor? Se tiverem alguma ideia, me escrevam nos comentários ou em e-mails ou DM no Instagram.

Boa volta às aulas a tod@s!!

Você acabou de ler “Agosto/2018 – Mulheres que lêem são perigosas“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2018. “Agosto/2018 – Mulheres que lêem são perigosas”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3Gx. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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39 exercícios de antropologia e desenho num livro só – Drawn to see de Andrew Causey

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Taí um livro perfeito para quem ama antropologia e desenho — ou só antropologia ou só desenho! Há tempos quero compartilhar com vocês a leitura dessa obra adorável, mas estava aguardando a publicação oficial de uma resenha que escrevi para a Mana. Agora saiu — cliquem aqui para acessar ou leiam abaixo!

Vale a pena também acessar o sumário completo da revista, com vários artigos e resenhas interessantes. Agradeço à editora deste número, Renata Menezes, pelo acolhimento da proposta, assim como à revisora que contribuiu para melhorar o texto.

Queria registrar também um agradecimento especial a Andrew Causey por esse livro tão bonito e generoso! Sinto-me honradíssima de ver meu trabalho citado em seus comentários (e na bibliografia) como uma das raras iniciativas de ensinar antropólogos a desenhar. Além de motivar meus alunos em sala de aula,  meu objetivo acadêmico é espalhar ideias e incentivar outras pessoas, onde quer que elas estejam, a tentar algo novo e criativo para produzir e compartilhar conhecimento.

Assim que terminei a leitura, fiquei sonhando com uma editora brasileira que pudesse traduzir e publicar essa pequena joia da antropologia contemporânea. Se conhecerem alguém, compartilhem a resenha e destaquem esse parágrafo:

O livro tem impacto muito maior do que seu objetivo declarado de “ensinar o desenho linear, como uma das opções para coletar, registrar, documentar e apresentar a informação etnográfica”. Tínhamos até o momento bons livros de ensino de desenho, de um lado; e bons livros de antropologia, do outro. (…) Mas esta é a primeira obra de fôlego a enfrentar de forma densa — tanto teórica quanto empírica — a maneira de unir o melhor dos dois mundos.

Para quem está acostumado a me ler apenas no blog, não estranhem o tom um pouquinho mais formal. De vez em quando também preciso alimentar meu Lattes… 😉 Obrigada desde já pela leitura!

Kuschnir, Karina. (2018). Resenha de CAUSEY, Andrew. 2017. Drawn to See. Drawing as an Ethnographic Method. Mana, 24(1), 271-275. https://dx.doi.org/10.1590/1678-49442018v24n1p271

Numa época de desconstruções e desalentos, Andrew Causey nos oferece uma dádiva. Drawn to See: Drawing as an Ethnographic Method é precioso para quem quer continuar acreditando que a antropologia é possível sem abdicar de uma postura crítica, reflexiva e renovadora. A obra enfrenta com seriedade os problemas teóricos do projeto etnográfico, e propõe soluções metodológicas amparadas em situações vividas no trabalho de campo do autor ou dos autores citados na excelente bibliografia. Textos e ilustrações formam um conjunto de leitura extremamente agradável. Trata-se de um caso raro de obra que consegue refletir, experimentar, demonstrar, propor sem deixar de apontar lacunas e nos fazer sorrir pelo caminho.

Drawn to See é teórico-metodológico, mas também é memorialista e pessoal — um diário escrito e gráfico do autor sobre sua trajetória como etnógrafo. Seu valor está nessas múltiplas camadas narrativas, nas quais vida, pesquisa e obra surgem imbricadas numa saudável antropologia. A etnografia é entendida não apenas como produção de conhecimento, mas de relações, afetos, sensações, visualidades, compartilhamentos, respeito e comunicação. O aprendizado do desenho é central, mas ao mesmo tempo secundário ao objetivo de nos ajudar a ver o mundo (visível e invisível) de modo mais aprofundado, focado e ativo, numa busca por conciliar observação e participação — dois pilares da metodologia antropológica.

O livro divide-se em sete capítulos, pelos quais se espalham 72 ilustrações. Além do debate sobre antropologia, imagem e pesquisa, a obra tem como eixo central ensinar antropólogos a desenhar. Causey inclui 39 exercícios, que chama de “Etudes” (Estudos), palavra que remete às partituras feitas para se aperfeiçoarem as técnicas e as habilidades dos músicos. Seu objetivo não é formar artistas, mas sim estimular o uso do desenho linear como modo de contribuir para a pesquisa de campo. Os materiais sugeridos são simples. Lápis, papel comum, canetinha de ponta porosa e guardanapos são as únicas coisas necessárias para realizar as propostas. Adiantando-se às possíveis resistências de seus leitores acadêmicos, o autor propõe uma lista das predisposições necessárias para começar: relaxar, focar (sentir), concentrar, desacelerar, aceitar (sem avaliações, sem notas, sem comparações), se interessar (ter curiosidade), desenhar o que se vê, desprender-se do ego, praticar.

Como se percebe ao longo da leitura, tais conselhos são fruto das experiências do autor ao longo de sua trajetória como artista e antropólogo. Hoje professor de Antropologia Cultural do Columbia College de Chicago, Causey fez mestrado e doutorado na Universidade do Texas, Austin, local cuja tradição ajuda a compreender sua crença no projeto etnográfico, felizmente, sem deixar de enfrentar seus paradoxos e dificuldades. Sua pesquisa de campo se deu entre os Toba Batak, em Samosir, ilha vulcânica localizada no interior do Lago Toba, ao norte de Sumatra, Indonésia. Um lugar incrível (experimentem digitar Samosir Island nas imagens do Google) que atrai turistas do mundo inteiro, situação que acabou sendo o foco da pesquisa de Causey, em 1994-1995, com um retorno em 2012. O etnógrafo tornou-se aprendiz de Partoho, artista local, escultor em madeira, que, junto com sua esposa Ito, foi seu principal interlocutor no campo.

A leitura permite acompanharmos a ressignificação do uso do desenho na antropologia desde os anos 1990, quando a pesquisa inicial foi feita, e os anos 2015-2017, quando o livro é encomendado, escrito e publicado. Na época em que terminou o doutorado, Causey chegou a expor no campus da universidade seus desenhos e pinturas feitos durante a etnografia. As imagens que retratavam pessoas, no entanto, tiveram de ser retiradas do local, sob o argumento de que não eram sérias o suficiente e poderiam mostrar-se ofensivas à população estudada. Naquela altura, pouco se discutia a possibilidade de se utilizarem os registros gráficos (croquis, esboços, desenhos, aquarelas, pinturas) como parte do conceito de antropologia visual, então voltada para o uso da fotografia e do filme.

Um dos grandes méritos de Drawn to See é contribuir para a ampliação e a consolidação da ideia, cada vez mais fortalecida na literatura recente, de que a imagem desenhada pode — e deve — voltar a assumir mais protagonismo no empreendimento etnográfico. O livro tem impacto muito maior do que seu objetivo declarado de “ensinar o desenho linear, como uma das opções para coletar, registrar, documentar e apresentar a informação etnográfica” (:3, tradução minha). Tínhamos até o momento bons livros de ensino de desenho, de um lado; e bons livros de antropologia, do outro. Existem bons artigos sendo publicados sobre a relação entre as áreas, sem dúvida. Mas esta é a primeira obra de fôlego a enfrentar de forma densa — tanto teórica quanto empírica — a maneira de unir o melhor dos dois mundos.

Na esfera do desenho, os 39 Estudos propostos são claros e acessíveis. O objetivo do autor é que sejam experimentados por todos. Nesse sentido, parece-me acertada a escolha do desenho linear como eixo dos exercícios, uma vez que é a linguagem de produção gráfica mais próxima do universo de pessoas alfabetizadas. Uma das propostas inovadoras e interessantes de Causey é a utilização de formas essenciais baseadas em números e letras. A ideia de recorrer a elementos primários (pontos, retas e curvas) para elaborar figuras complexas não é nova, mas o apoio em formas numéricas e alfabéticas é uma bem-vinda criação do autor. Junto com as chaves de percepção dos Estudos 1 e 2, as propostas 3 e 4 formam um conjunto simples mas bastante eficaz para se desenvolver a habilidade de enxergar pelo desenho.

Nos 35 Estudos seguintes, Causey alterna sugestões mais relaxadas com outras mais elaboradas, numa coleção estimulante e divertida, mas também reflexiva e cuidadosa. Os exercícios têm um bom destaque gráfico no livro, pois estão impressos em fundo cinza, com ilustrações acompanhando a explicação textual. A série e todas as 72 imagens da obra estão numeradas de forma clara e contêm a duração aproximada de sua realização. O tempo estimado da grande maioria dos Etudes (33 em 39) é inferior a 10 minutos; apenas dois levariam de 10 a 15 minutos; e quatro não têm um intervalo definido. A curta duração é atraente para os novatos e estratégica para provar, mesmo aos mais céticos, que não é preciso 10 mil horas de prática para produzir desenhos etnograficamente relevantes. A ideia é pavimentar um caminho para ver, enxergar, perceber, como enfatiza o título do livro.

Pelo lado da antropologia, Drawn to see aborda questões complexas com a mesma clareza com que apresenta os exercícios visuais. Como destaquei acima, Causey enfrenta a problemática da dupla tarefa de “observar” e “participar”, assim como inúmeras questões associadas ao projeto etnográfico. Da necessidade de atenção, registro e memorização, passando pelo diálogo e pelas subjetividades de pesquisadores e interlocutores, o autor aborda problemas na produção de conhecimento antropológico, nas ideias de representação, temporalidade, movimento, memória, corporalidade, entre outras. E tudo isso alinhavado por um profundo comprometimento com a ética na etnografia, como mostram os vários exemplos que nos convidam a aprender com as dúvidas, as falhas e as dificuldades do próprio Causey em campo. Chama a atenção o tom equilibrado e sensato da linguagem do autor, demonstrando respeito, empatia e interesse pelo universo investigado, sem sinal da soberba, do paternalismo e da assertividade messiânica que infelizmente tanto frequentam a literatura antropológica.

Causey_pFigura 1: Desenho de Andrew Causey feito a partir de suas lembranças de campo. Na legenda original se lê: “Ito, debilitada pela artrite, senta em sua mesa de cozinha, de sua casa reconstruída, falando no celular sem parar com um de seus oito filhos. Ela me entrega o telefone sem me dizer com quem estou falando, dizendo: ‘Omong! Omonglah sama dia!’” (Imagem cedida pelo autor para esta resenha).

Esse mesmo senso ético pode ser observado na forma como o autor lida com sua rede de apoio intelectual e com a bibliografia consultada. Cada imagem, quando não de sua autoria, é publicada com aviso de permissão e referência ao/à autor/a ou fonte. As citações aos autores, aos artigos e às obras consultadas são claras e precisas, sempre com indicação das páginas correspondentes. O destaque de cada uma, no texto ou em notas, é compatível com sua relevância para o argumento em pauta. Muitos Estudos indicam as fontes que os inspiraram, sejam obras ou comunicações orais. A pesquisa bibliográfica é em si mesma um empreendimento notável do livro, pois traz um levantamento exaustivo, especialmente em língua inglesa. É consulta indispensável para todos os que se interessam pelo tema.

Entre as muitas qualidades de Drawn to See estão as histórias do trabalho de campo do autor. Atuando como aprendiz de Partoho, Causey percebe o quanto seus olhos não veem da mesma maneira. Ao copiar um desenho do mestre, é corrigido por registrar “errado”, num senso estético alheio aos Toba Batak. Divertimo-nos em vários momentos do livro com as críticas dos interlocutores às imagens do etnógrafo, ora por não perceber detalhes culturalmente relevantes, ora por representar de forma irônica, errada, distorcida ou fragmentada aquilo que lhes parecia correto, decente ou óbvio. Numa das ocasiões, algumas mulheres tomam o caderno do pesquisador e exigem que o retrato de uma delas seja refeito até ficar satisfatório.

A reação de Causey é animadora: desenhar é aceitar riscos; é gerar experiências memoráveis e revolucionárias; é pressupor que o pesquisador “não sabe o que não sabe”. As imagens são notas, documentos de campo que se dão a ver. Não é preciso se desculpar, mas sim aprender com os diálogos, as reações e as interpretações. Todo desenho etnográfico vale a pena, desde que seja uma criação ética, moral e intelectualmente responsável. Sob este aspecto, é tocante o caso de uma entrevista feita pelo etnógrafo com um veterano de guerra, viúvo, cuja fama social era a de arrogante e orgulhoso. Desse encontro, que reverte suas expectativas, o autor não faz registros gráficos ou textuais. Olha nos olhos, exercita sua visão periférica na penumbra, aceita a memorização e o silêncio como parte da experiência. Nem tudo, afinal, pode (ou deve) ser registrado.

Nos capítulos finais, Causey se pergunta como ultrapassar as superfícies, como trazer à tona as estruturas e as motivações que animam pessoas, coisas e animais. Suas respostas em textos e imagens são de uma rara beleza: revelam-se mais como perguntas do que soluções; são imperfeitas e tentativas; são portas que se abrem para dar sentido ao mundo — possibilidades dentro do impossível projeto etnográfico.

Sobre o livro: CAUSEY, Andrew. 2017. Drawn to See. Drawing as an Ethnographic Method. University of Toronto Press. Na época, o Andrew Causey me escreveu gentilmente avisando da publicação e dizendo que a editora iria me enviar um exemplar. Mas o volume provavelmente se extraviou no correio, pois nunca chegou, chuinf… Então corri para comprar na Amazon mesmo. Link aqui: http://a.co/8o3cwuf

Sobre o desenho: Fiz hoje essa capinha para ilustrar o post. Achei um bloco de papel de aquarela A5, da Cotman. Era um pouco texturado demais, daí minha dificuldade nas sombras… Desenhei um rápido rascunho a lápis, depois contornei com canetinha Pigma Micron de nanquim permanente 0.2 e fiz alguns detalhes com a 0.05. Pintei as cores da capa com várias aquarelas, depois fiz as partes cinza escuro com guache, assim como as letrinhas vermelhas e brancas. Para os rascunhos de Causey na capa, usei uma canetinha de naquim permanente Unipin bem velhinha, para dar esse ar de lápis grafite do original.

Você acabou de ler “39 exercícios de antropologia e desenho num livro só – Drawn to see de Andrew Causey“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2018. “39 exercícios de antropologia e desenho num livro só – Drawn to see de Andrew Causey”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3G6. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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A gorda, missão íntima

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“Não se pode ir com muita sede ao pote. Nem com pouca. Uma pessoa nunca sabe como abordar o pote. É à sorte.” (A gorda, de Isabela Figueiredo, p. 63)

Foi num domingo de manhã que uma amiga me recomendou A gorda, de Isabela Figueiredo (ed. Todavia). Mal sabia o quanto iria me emocionar esta narrativa numa primeira pessoa cheia de contrastes: sensível e objetiva, triste e engraçada, surpreendente e cotidiana. Foi um pote delicioso, bebido com sede!

“Em silêncio, sou sempre eu e o que em mim se compõe e apruma.” (114)

Estamos em 2018 e ainda me espanta e alegra ler uma mulher com voz num mundo em que são os homens que “têm direito a ser grandes”(30). Isabela, Maria Luísa, a mamã, a titia, a vizinha, a amiga… mulheres que precisam aprender a enfrentar seus corpos:

“O meu corpo não esperava que eu tivesse a coragem. Foi surpreendido logo de manhã. Levaram-se para o bloco de operações e zás. (…) Estava só eu e o meu corpo, como se tivesse acabado de nascer, mas consciente. Só nós dois, na nossa luta. (…) ‘Quem manda sou eu!’. E o meu corpo a piar fininho. Quietinho. Dobrado sobre si. E eu dizendo-lhe, ‘subestimaste-me. Afinal não conhecias assim tão bem a mulher com a qual te meteste.'” (124-5)

O mundo interior de Maria Luísa, a protagonista do romance, é ao mesmo tempo melancólico e bonito…

“Por vezes considero que perdi muito tempo, no passado, desgostando de mim, mas reformulo a ideia concluindo que o tempo perdido é tão verdadeiramente vivido na perdição como o que se pensa ter ganho na possessão. E volta o sossego.” (21)

Frágil e forte…

“Mas não, não, mesmo pelos meandros da loucura considerava que matar-me seria um grande desperdício, avaliando o investimento já realizado.” (42)

Sofrido e divertido…

“Imaginei-os comentando uns com os outros, ‘doutor Sequeira, está ali uma senhora a sofrer por amor, vá lá dar-lhe uma injeção ou pô-la ao soro’, e no meio da loucura soltei uma gargalhada. Rir-me era um bom sinal. Ainda não estava louca (…)” (70)

Há uma solidão por vezes sufocante…

“Eu era uma miséria de mulher, um torpor, uma dor que já nem dói. Um farrapo de lã que já não aquece.” (72)

…mas é a de um corpo vivo, um corpo que ama o corpo do outro (David), que se deixa rebentar no momento do encontro, quando não se pertence “a lugar algum”, quando sexo e cérebro são só “dor luminosa no lugar do nada, ópio que não pode durar mais” (40).

“É uma missão íntima entre o nosso coração rarefeito e o do Tejo [o cão]. Os nossos caminhos também se cruzaram sem o termos pedido.” (135)

Acompanhamos as reflexões de Maria Luísa por dentro, os fatos se dobrando às memórias. É uma narradora crescida…

“A vida adulta raspa a pele.” (127)

…que sente saudades

“Falta-me qualquer coisa muito antiga.” (129)

…mas segue:

“Há um dia em que todas as noites acabam.” (151).

Não sabemos ao certo como ou quando se dá seu ponto de fervura interna (“O teu pai ferve em pouca água”, diz a mamã, p.137). Em algum momento nos damos conta, junto com a narradora, que os pais se foram, que a casa se vende, que o desconforto sossega, que as lembranças clareiam, que a vida se ilumina:

“Que bela mulher eu sempre fui! Um corpo tão perfeito, tão imponente, como pude desamá-lo tanto?!” (203)

Que leitura comovente, simples, amorosa, feito chão de tábua corrida com sol.

Um ótimo final de semana, leitores queridos! ☼

Sobre o livro: Agradeço à querida Maria Helena Mosse pela indicação d’A gorda. Que boa companhia! Da autora, Isabela Figueiredo, só sei o básico: é moçambicana, radicada em Portugal desde 1975, autora de Cadernos de memórias coloniais (ainda não disponível no Brasil) e deste primeiro romance A gorda (ed. Todavia, 2018). Adorei que a editora manteve o português lusitano, que amo ler. Comprei numa livraria de rua aqui no Rio de Janeiro, mas vi que está mais barato na Amazon.

Sobre o desenho: Estava sem ideia de imagem para o post e adoro desenhar o objeto-livro. A capa original é do Pedro Inoue. Desenho feito no verso de um papel Canson (bloco XL Mix Media) com canetinha de nanquim permanente Pigma Micron 0.2, depois colorido com aquarela (várias marcas, mas a maioria Winsor & Newton), que depois resolvi cobrir com guache (tenho as três cores primárias da Winsor & Newton). Foi um sacrifício escrever em laranja na capa e na lateral. Depois dei uma ajeitada em tudo no Photoshop para ficar legível.

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2018. “A gorda, missão íntima”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3Fh. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Ler muda o mundo – sobre “O sol e o peixe” de Virginia Woolf

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“Ler mudou, muda e continuará mudando o mundo.” (Virginia Woolf)

É difícil  começar a escrever sobre o livro “O sol e o peixe: prosas poéticas”, de Virginia Woolf: são tantas frases que dariam boas epígrafes! Como diz o subtítulo, é ensaio mas parece verso. Aí vão, por capítulos (fora de ordem), algumas ideias desse linda obra.

Em “A paixão pela leitura”, a autora celebra os livros como a grande criação da humanidade, nos provocando para sermos leitores mais generosos. Seu alerta é atual:

“(…) nossa primeira obrigação para com um livro é que devemos lê-lo pela primeira vez, como se o tivéssemos escrevendo. Para começar, devemos nos sentar no banco dos réus e não na poltrona do juiz. Devemos, nesse ato de criação, não importa se bom ou ruim, ser cúmplices do escritor. Pois cada um desses livros (…) representa um esforço para criar algo.” (p.35)

O mesmo poderia ser dito para a escrita ou leitura de uma tese! Deveríamos tentar entender um texto pelos olhos de quem o escreve. Assim, diz Virginia, aprendemos, inclusive com aqueles que mais “violentam nossos preconceitos”. (p.36) Um livro nos ensina quando deixa impressões “penduradas no armário da mente”, como “roupas que tiramos e penduramos à espera da estação adequada”. (p.38)

No ensaio “Montaigne”, a autora aproveita para nos falar da escrita de si:

“Dizer a verdade sobre si mesmo, descobrir a si mesmo de tão perto, não é coisa fácil. (…) aquilo que pensamos, quão pouco, então, somos capazes de transmitir!” (p.14)

Admirada pelo escritor-filósofo, pelo esforço de escrever dizendo a verdade, Virginia afirma:

“Pois, para além da dificuldade de comunicar aquilo que se é, há a suprema dificuldade de ser aquilo que se é. Esta alma, ou a vida dentro de nós, não combina absolutamente com a vida fora de nós.” (p.15)

Haverá um segredo para uma existência coerente, por dentro e por fora? O escritor deve se recolher ou seguir para o mundo?

“Observe a si próprio: num momento, você está todo animado; no seguinte, um copo quebrado deixa-o à beira de um ataque de nervos. Todos os extremos são perigosos. É melhor ficar no meio da estrada, nas trilhas costumeiras, por mais lamacentas que sejam. Ao escrever, escolha as palavras comuns; (…)” (p.18)

Uma vida flexível, disposta ao movimento e às mudanças, é uma vida mais real e feliz, sem a rigidez das convenções e da morte, escreve Virginia. “Talvez” é sua palavra favorita. “É preciso viver entre os vivos” (Montaigne, III, 8), buscando nos comunicar com nossos semelhantes.

“Comunicação é saúde; comunicação é verdade; comunicação é felicidade. Compartilhar é nosso dever; mergulhar energicamente e trazer à luz aqueles pensamentos ocultos que são os mais mórbidos; não esconder nada, não fingir nada; se somos ignorantes, dizê-lo; se gostamos de nossos amigos, fazer com que o saibam.” (p.22)

Como não concordar com esse lindo trecho?

A autora segue, falando do prazer de viajar, seja para longe, seja para dentro de um singelo sonho.

“A beleza está por toda parte, e a beleza está a apenas dois dedos de distância da bondade.” (p.23)

A lição que Montaigne lhe deixa é a de um “grande mestre da arte da vida”, a de alguém que “agarrou a beleza do mundo com todos os dedos”, atingindo a felicidade. (Algo que, infelizmente, sabemos que Virginia não conseguiu fazer; o que torna esse ensaio doloroso para quem ama sua obra, como eu.)

Suas lembranças do pai estão em “Memórias de uma filha: Leslie Stephen, o filósofo em casa”, segundo capítulo do livro. É bonito ler suas recordações de carinho, sabedoria, cachorros e caminhadas. Apesar de rígido quanto aos comportamentos, seu pai lhe dava o principal:

“se liberdade significa o direito de ter os seus próprios pensamentos e seguir suas próprias metas, então ninguém respeitava a liberdade — na verdade, insistia nela — mais completamente do que ele.” (p.32-3)

Na filosofia paterna, o lema era “leia o que quiser”! Aos 15 anos, Virginia tinha total liberdade para vasculhar a biblioteca de casa. Para ele, leitura e escrita eram simples: goste dos livros que gostar; e escreva “com o mínimo de palavras”, com clareza, dizendo o que quiser dizer. (p.33)

Escrevi apenas sobre os três capítulos iniciais, embora o restante do livro merecesse igual atenção. O caso é que o post já ficou muito longo, e logo nessa semana de Natal, que ninguém tem tempo de ler. Ou seria o contrário? Que melhor lugar para se refugiar nessa época do ano do que nas leituras, nos livros, ensaios, contos ou poemas?

Minha sugestão para essa próxima semana: desliguem os celulares e mergulhem num livro! É simples, é bom, e ainda nos recarrega, sem fio.

Muito obrigada por todos os comentários inteligentes e gentis que vocês escreveram nos últimos posts, de verdade! Até semana que vem. ☼

Sobre o livro: “O sol e o peixe: prosas poéticas”, de Virginia Woolf. Seleção e tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.  Vejam que linda é a capa original (abaixo), projeto de Diogo Droschi. Pena que não deram o crédito da origem desses peixes, que devem vir de alguma coleção de ilustração científica antiga. Aproveito para agradecer mais uma vez à leitora do blog que me indicou esse livro. ♥

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4 coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-ou-dignas-de-nota da semana:

♥ Para quem lê inglês: fui uma das milhares de pessoas que se emocionaram e se divertiram com o conto Cat person, de Kristen Roupenian, da New Yorker. (Em breve sairá em português pela Companhia das Letras.)

♥ Para quem tem filhos entediados: essa semana nos divertimos jogando Banco Imobiliário Júnior. Era daqueles brinquedos de tabuleiro velhos, que já estava quase indo para doação, mas reviveu por insistência da Alice. Derrubamos algumas regras, criamos outras, fizemos doações generalizadas e falimos! Tudo sem precisar de internet.

♥ Uma notícia maravilhosa: nosso livro “Do gato Ulisses as sete histórias” foi selecionado como leitura recomendada para os alunos das escolas municipais de Belo Horizonte. Meu agradecimento à nossa querida editora Cilene Vieira, pelo empenho em divulgar essa obra. (Uma seleção de trechos do livro aqui.)

♥ Por falar em livros, estou lendo “Azul: história de uma cor”, de Michel Pastoureau, edição portuguesa da Orfeu Negro, com tradução de Anabela Carvalho Caldeira e José Alfaro (2016). Do mesmo autor, já li “Preto: história de uma cor”. Quando acabar, prometo que faço um post sobre os dois.

 

Sobre o desenho que abre o post: Peixes inspirados nos desenhos da capa do livro, feitos com as limitações de cores que tenho trabalhado no meu caderno atual Laloran, como expliquei aqui. Canetinhas azuis Muji 0,38, Pigma Micron 0,2, Tombow Brush (números 451 e 526); e uma amarela da Faber-Castell Pitt brush. Não vejo a hora de acabar esse caderno, mas sinto que aprendo com o desafio das cores restritas. E, aqui, nesse cantinho onde só chegam os artistas que lêem o blog, meu desejo para as férias: bons desenhos e pinturas! Quem tem um sketchbook nas mãos, nunca está só. ♥

 


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Escrita Diária – Dez dicas para curtir e manter o hábito de escrever

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“Se lhe ocorrer um argumento brilhante, uma réplica vitoriosa que mude o rumo da conversa, não ceda à tentação de brilhar, mantenha o silêncio; as pessoas finas verão sua inteligência nos seus próprios olhos. Você terá tempo de se mostrar inteligente quando for bispo.” (A cartuxa de Parma, Stendhal)

Lendo Cervantes, Rabelais, Stendhal, Eça de Queirós, sinto-me no mais feliz dos mundos, feito de pessoas que não se levam tão a sério mas, ao mesmo tempo, trabalham a sério. E não são só os clássicos que fazem isso, claro. Minha lista de imperfeitos-perfeitos vai de Carlito Azevedo, Anne Lamott, Juva Batella, Ana Paula Lisboa, Marjane Satrapi — tem um monte de escritores maravilhosos que sabem rir de si e de nós, escrevendo com falhas, ironias e pérolas, tudo numa página só.

Essa é a minha base para escrever todos os dias:

1) Escrevo sem querer brilhar ou parecer inteligente — Pode parecer bobagem, mas não é. Muitos alunos (e eu mesma) empacam na hora de escrever porque querem produzir textos fantásticos. Não é um bom caminho. Aliás, agora mesmo não estou sendo nada brilhante, pois já dei essa dica aqui no blog! Prefiro escrever muito, qualquer bobagem, e depois, com o tempo e alguma sorte, peneirar boas ideias.

2) Escrevo 300 palavras no mínimo todos os dias — Assim que ligo o computador de manhã, a primeira coisa que faço é abrir um arquivo de escrita diária no meu editor de texto. Coloco data, dia da semana, hora e escrevo até contar 300 palavras, o que dura em torno de 11 a 15 minutos (sim, eu medi!). Em alguns dias, fico mais tempo, empolgada com alguma ideia que tenha surgido ou escrevendo algo que possa virar um post, ou até registrando uma atividade da aula do dia anterior, por exemplo. Muitas vezes, porém, fico só nas 300 e poucas palavras mesmo, mal-humorada e irritada com os rituais que invento para mim mesma. Pelo menos já começo sabendo que consigo terminar em 11 minutos. Já é uma vitória escrever algo em dias assim. O saldo é o que vale, tanto pelo aspecto mecânico, de acostumar o corpo e a mente a sentar e escrever todos os dias, quando pelo conteúdo produzido: no meio de um monte de bobagens e reclamações, acabo escrevendo ou anotando coisas que me ajudam a pensar, viver e trabalhar.

3) Escrevo para me manter saudável — Quando estou numa boa fase, só sento para escrever depois de fazer alguma atividade física. Evito abrir o navegador e até ver e-mails antes da escrita e de fazer aquilo que considero o mais importante para o meu dia (ver item 6 abaixo). Mas eu estaria mentindo se dissesse que consigo fazer isso sempre. Há épocas melhores, outras piores. Nesse ano (2017), consegui ficar bem de março a início de junho. De lá para cá, andei doente algumas vezes, perdi o ritmo, voltei, mas acabei decretando férias de mim mesma por duas semanas, no final de julho, e me permiti ficar bastante com as crianças e ler dois livros inteiros.

4) Escrevo sobre o que quero escrever ou realizar — Escrever logo de manhã é ótimo para organizar o pensamento sobre o que considero mais relevante para o dia que está começando. Uma dica que já li em vários lugares na internet é tentar responder à pergunta: quando o dia terminar, o que eu gostaria de ter escrito/realizado? O hábito vai mostrar que nossa ambição inicial é fantasiosa, tipo querer correr 5 km, escrever 10 páginas, arrumar a casa, dar atenção às crianças e dormir cedo, tudo num dia só. É frustrante ter tantas expectativas. Esses excessos acabam me dando uma sensação de fracasso, que afogo navegando nas redes sociais. Hoje em dia me contento em planejar duas ou três coisas, bem modestas, como: ir à academia (só de pisar lá já está bom!); dar ou preparar uma aula (o que sempre leva o triplo de tempo imaginado) e desenhar algo (como tocar um instrumento, desenhar é prática, mesmo que por 5 minutos!).

5) Escrevo o que estiver na pauta do dia, da semana ou do mês — Após o momento diário-de-300-palavras, tenho que voltar à realidade: preciso olhar a agenda e a lista de tarefas. Se houver algo importante, tento me forçar a começar logo, sem responder a e-mails nem ver redes sociais antes das 16:00 horas (ver item abaixo). Com a prática cotidiana de escrever 300 palavras, começar um outro trabalho de escrita deixa de ser tão assustador. Se for algo que já iniciei, releio o que produzi no dia anterior e sigo em frente, parando aqui e ali para consultar algumas fontes, mas tomando cuidado para não me perder nessa tarefa. Se for para escrever algo novo, meu principal truque mental é imaginar que estou escrevendo uma carta para uma amiga querida, explicando o assunto de que quero tratar. (Como já fiz vários posts sobre isso, não vou me deter nessa parte criativa; os links seguirão no final.)

6) Escrevo com as redes sociais desligadas — Nem preciso dizer que isso é mais um desejo do que uma prática… mas continuo buscando estar no fluxo criativo offline. Coisas que tenho feito nessa direção: desligar notificações no celular para aplicativos de redes sociais ou e-mail. Andei radicalizando (em março) e tirei até os avisos sonoros de todas as mensagens do Whatsapp, mas não deu para manter. Consegui, desde então, ficar sem Facebook no celular e, mais recentemente, sem Youtube. De vez em quando, não resisto e vejo ambos no navegador, mas o Messenger não funciona, ainda bem. Uma dica de auto-sabotagem é limpar o cache do Chrome, de modo que, para navegar nesses sites, dá muito trabalho lembrar da senha, o que me lembra de não navegar. Mantenho o Twitter porque não acho muita graça. Também estou com o Instagram instalado, onde sigo alguns artistas. Quando percebo que estou vendo muito as Stories, desinstalo por uma semana. Também só sigo artistas e ilustradores, tentando não repetir as mesmas pessoas que já acompanho pelo Fb.  (Ufa. Fiquei cansada de descrever essa lista toda… E pensar que, até outro dia, esses portais infinitos não existiam! E a gente vivia, viu?)

7) Escrevo sobre o que escrevi — No final do dia, abro novamente o arquivo de escrita diária (deixo um link com o atalho no desktop) para escrever mais um pouquinho. Nessa etapa, utilizo uma listinha de perguntas, sem metas de quantidade de palavras. Respondo objetivamente, sem me alongar muito, questões sobre criatividade: O que escrevi, desenhei ou pintei hoje? Outras coisas que terminei ou avancei hoje? Alguma coisa legal que Ouvi/Li/Assisti?

8) Escrevo sobre o que aprendi — Em seguida ao que descrevi acima, escrevo um pouquinho sobre como estou me sentindo, sobre minhas relações afetivas, as dificuldades e alegrias do dia: O que aprendi hoje? Como ajudei alguém? Qual foi o pior do dia / ou O que foi difícil? Qual foi o melhor do dia / ou Pelo que estou grata hoje?

9) Escrevo sobre o amanhã — Para terminar, tento responder à pergunta: Como posso fazer/ter um dia bom amanhã? Aqui vale qualquer coisa, até escrever que preciso descansar, ir ao médico, conversar com uma amiga, me concentrar mais (ou menos) etc. Esse amanhã também pode se transformar numa reflexão sobre o futuro de médio ou longo prazo.

10) Leio — Querer escrever sem ler é como querer comer sem comida! Ler é um dos maiores prazeres da minha vida — é o que me alimenta, me faz pensar, rir, agir. Nada do que faço, nem minha própria existência, seria possível sem a leitura. Leio muito mais livros e textos do que consigo contar, e cada um deles me norteia em tudo que escrevo.

Obrigada a todos que me leram até aqui. ♥ Se vocês forem obsessivos como eu quando gostam de um tema, aí vão alguns outros posts sobre o assunto escrita:

Dez truques da escrita num livro só
Mente selvagem: dicas de escrita de Natalie Goldberg
25 dicas para revisar textos acadêmicos (de trás pra frente)
Os bastidores do blog
Carta a um jovem doutorando
Como não escrever uma carta para a seleção de mestrado

Além desses, vocês podem ver todos das tag mundo acadêmico, escrita, ou livros. Esse sistema de tags não está super organizado mas é o que temos no momento. Ah, e tem posts de que gosto muito sobre o Carlito Azevedo e vários com a tag Juva Batella.

Por falar no Juva, ele fez a revisão da minha tese de doutorado e está aceitando trabalhos de revisão de texto! O Lattes dele aqui e o contato é juvabatella [@] gmail.com. Fico até sem palavras para elogiar… Ele é autor do único livro que ilustrei, é meu melhor amigo, meu amor, meu tudo. ♥

….

Sobre o desenho: Desenho do meu notebook feito com canetinha Pigma Micron (tamanhos 0,2, 0,1 e 0,05), depois colorido com aquarelas variadas, num papel solto (não lembro a marca). Foi complicadinho, mas me diverti criando uns cinco ou seis tons de cinza para as diferentes áreas do desenho. Não sei se dá para ver na versão eletrônica.

Sobre a citação: A epígrafe do post está na página 171 do livro A cartuxa de Parma, de Stendhal. (Tradução de Rosa Freire D’Aguiar, Editora Penguin/Companhia das Letras). Li este livro por recomendação do Carlito Azevedo, quando comentei que tinha adorado O vermelho e o negro, do mesmo autor. A cartuxa… é um romance fantástico que merece um post próprio, mas não resisti começar a citar logo.

Até semana que vem e boas escritas!

Você acabou de ler “Escrita Diária – Dez dicas para curtir e manter o hábito de escrever“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2017. “Escrita Diária – Dez dicas para curtir e manter o hábito de escrever”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: http://wp.me/p42zgF-2yd. Acesso em [dd/mm/aaaa].

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