Karina Kuschnir

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Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)

Vamos à Parte 2 da aula lúdica que fiz para a disciplina de Laboratório de escrita. Materiais e dinâmicas propostas estão na Parte 1, assim como a análise das duas primeiras perguntas.

Aqui chegamos ao que mais me interessava: como os estudantes se sentem em relação à escrita e à leitura na faculdade de Ciências Sociais? (As respostas são anônimas.)

Pergunta Verde — Como foi sua experiência de escrita mais positiva durante a faculdade? E a mais negativa?

No lado positivo, salta aos olhos que os alunos amam escrever sobre temas que lhes interessam. O mesmo ocorre quando conseguem vencer desafios, tipo “escrever um texto de 10 páginas”, ou conectar autores como “Freud e Lélia Gonzalez”. É desses trabalhos de vulto que eles se orgulham, e ainda mais se tiverem um retorno positivo por parte dos professores. Outra alegria é quando descobrem fontes e métodos, como pesquisar na hemeroteca da Biblioteca Nacional pela primeira vez.

Em relação às experiências negativas, a turma se dividiu entre três queixas principais: a) dificuldade com prazos (a maioria!); b) desgosto com autores e temáticas; c) rejeição a formas acadêmicas, como provas, resumos, formatações complicadas, trabalhos em grupo. Confesso que me surpreendeu ler apenas duas respostas sobre desafios emocionais (depressão e insegurança). Talvez esse tema tenha sido encoberto pelo problema dos “prazos”, com frequência ligado à ansiedade e outros sentimentos difíceis.

Ou seja, profs queridas, para estimular escritas, precisamos dar espaço para eles explorarem escolhas e fontes, mas lembrando de desafiá-los com propostas ambiciosas. Para dar certo, isso tem que vir embalado com cronograma e apoio para redigirem em etapas, sem deixar tudo para o último dia.

Resumindo, é o básico que a gente também precisa, né? Eu pelo menos queria uma prof assim! 😉

Pergunta Laranja — Fã ou Hater — Qual a sua experiência de leitura mais positiva durante a faculdade? (De quais autores você é fã e por que?) E a mais negativa? (De quais autores você é “hater” e por que?)

Essa pergunta trouxe uma contra-estatística maravilhosa do mundinho “das humanas”. As autoras mais amadas são mulheres negras: Lélia Gonzalez, Bell Hooks, Conceição Evaristo, Patrícia Hill Collins, Grada Kilomba, Sueli Carneiro. (Já os mais citados homens foram Paulo Freire e Franz Fanon). Dá para sentir o motivo… As escritas preferidas têm “sensibilidade” para tratar de “problemas do cotidiano”, geram “identificação”, trazem “vivências” próximas e “representatividade”. Como escreveu uma aluna: “lendo Conceição Evaristo me sinto ouvida, contada, vista”.

Em termos de forma, os estudantes preferem “textos simples que conseguem tratar de problemas complexos”, como concluiu o time Laranja. Querem escrita fluida clara, leve, vívida, original, compreensível, coesa, direta, sistematizada, de fácil entendimento, “sem perder a profundidade teórica”.

Falando assim parece tão simples. Só que não é! Haja revisão.

E chegamos aos “haters”. Pierre Bourdieu ganhou de lavada a corrida dos mais detestados, ainda que tenha tido um fã. Foi seguido por outros como Hegel, Durkheim e Gilberto Freyre — este associado ao racismo.

A turma foi direta na descrição do que desgosta: autores pedantes que escrevem textos pretenciosos, rebuscados, enigmáticos, enrolados, truncados, pesados, artificiais. São difíceis de entender e, por isso, dificultam a concentração na leitura. Além do racismo, a literatura acadêmica foi relacionada ao “academicismo”, “descritivismo” e “formalismo”. Um estudante resumiu bem: não gosta de textos que ficam “dando voltas e não dizem o que querem dizer”. Errado não está, né?

Confesso que até tentei defender Bourdieu, mas lembrei da época dos meus estudos para o mestrado em que chamei um amigo francófilo para me ajudar a lê-lo. Era um artigo publicado no auge da sua fase rebuscada. Meu professor olhou praquilo e disse: “isso não está em francês não!” Se ele que dominava a língua não estava entendendo nada, que chance eu teria? Deixei pra lá e rezei. (Deu certo.) Anos depois descobri que havia outros “bourdieus” e, embora não seja fã, consegui entender suas ideias.

Voltando ao assunto: concordo com tudo que a turma diagnosticou! Por isso nossos livros-chave para o Laboratório de redação são “Truques da escrita” de Howard S. Becker, “Quarto de despejo”, de Carolina de Jesus e “Cartas a uma negra” de Françoise Ega. A explicação para esse trio fica para um próximo post!

Boas aulas, pessoas queridas!

PS: Qual o objetivo disso tudo? Ao longo do semestre, essa aula consolida os critérios dos próprios alunos para revisão dos textos deles mesmos. Na prática, eles se dão conta de que precisam revisar muito para atingir os seus ideais de escrever bem.

Projeto “Como escrever um texto em 8 meses” — Conforme prometi no Instagram, vou escrever sobre o processo de produzir um texto acadêmico que preciso entregar daqui a 8 meses. Tem que ser algo inédito e decente. Começo esse diário de escrita com meu problema inaugural: sobre o quê devo escrever? Sou eu que decido o tema. Já consultei filhos, colegas, estantes e ainda não sei. Resolvi seguir a máxima que o Ju tanto gostava: escrever para saber o que eu gostaria de escrever se estivesse escrevendo! (Foi mais ou menos o que disse Marguerite Duras, H. Becker, Anne Lamott e um monte de gente que escreve sobre escrita.) Vou tentar seguir a ideia de escrever 300 palavras por dia, conforme disse que fazia no post Escrita Diária. (Às vezes me pergunto quem era essa Karina de 2017?) Prometo que volto semana que vem para contar.

Sobre a proposta das aulas lúdicas: Esse post é continuação da Parte 1. Mais ideias de aulas lúdicas aqui.

Sobre a ilustração: Apenas inverti a ilustração do post Parte 1 (a explicação está lá). Aproveito para contar que era assim que Leonardo Da Vinci (1452-1519) escrevia em seus cadernos. Os alunos acharam que eu estava brincando, mas é verdade, como explica esse simpático blog.

Você acabou de ler “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 2)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-40VAcesso em [dd/mm/aaaa].


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Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)

Para animar, resolvi adaptar uma antiga aula lúdica para começar bem o semestre com minha turma de Laboratório de redação. Como na aula “brincando de pesquisar”, o objetivo era conhecer os alunos. Dessa vez, porém, foquei nas suas experiências com leituras e escritas, antes e depois da faculdade.

Material necessário: Algumas folhas coloridas em quatro cores diferentes. Comprei um pacotinho de A4 na loja Caçula da Rua Buenos Aires, perto do IFCS. Algo parecido com esse aqui.

Dinâmica: Como foi feita a aula:

Avisos — As respostas são anônimas; não é para nota; não tem certo ou errado; conta como participação. Pedir que tentem ser bem específicos nas respostas.

Preparação — Pedir para alguns alunos ajudarem a cortar o papel A4 papel em 8 pedaços, até que todos da turma tenham um pedaço de papel de cada cor.

Quadro — Escrever as cores e as perguntas no quadro (ver abaixo).

Alunos — Pedi que os alunos respondessem nos pedaços de papel colorido. Cada papel recebe duas respostas: positivas + e negativas -. Alguns alunos responderam no mesmo lado; outros escreveram mais e utilizaram frente e verso. Não importa. Não é necessário copiar as perguntas.

Amarelo — Qual é a sua lembrança de escrita mais positiva antes de entrar na faculdade? E a mais negativa?

Rosa — Qual é a sua memória de leitura mais positiva antes de entrar na faculdade? E a mais negativa?

Verde — Como foi sua experiência de escrita mais positiva durante a faculdade? E a mais negativa?

Laranja — Qual a sua experiência de leitura mais positiva durante a faculdade? (De quais autores você é fã e por que?) E a mais negativa? (De quais autores você é “hater” e por que?)

Pote para depositar a resposta — Por conta de outras dinâmicas, tenho uma caixa preta com um buraco no meio que utilizei para ir coletando os papéis com as respostas.

Organização por cores e grupos —Todas as respostas coletadas foram misturadas na caixa. Em seguida, colocamos o monte de papéis no chão e separamos por cores. Dividimos a turma em quatro grupos e cada um ficou com uma cor. Eles acabaram chamando os grupos de “times”. Ficamos com aproximadamente 8 alunos por time/cor. Nesse momento é importante que eles movimentem as cadeiras para sentarem-se juntos de seus grupos.

Debate intra-grupos — Cada grupo leu todos os papéis da sua cor e fez uma análise qualitativa das respostas positivas e negativas. Depois, cada aluno do grupo escolheu uma resposta significativa da sua cor para ler em voz alta.

Exposição e debate com a turma — Organizamos as cadeiras em círculo para que a turma toda pudesse se escutar, mantendo os integrantes de cada time próximos uns dos outros. O resultado da análise de cada cor foi apresentado para a turma por um aluno escolhido pelo grupo, sendo essa explicação depois embasada com as leituras das respostas escolhidas para serem lidas. Seguimos a ordem dos grupos acima: amarelo, rosa, verde e laranja.

Análise das respostas

Time Amarelo — Minha lembrança mais positiva de escrita foi… Exemplos: “quando escrevi meu nome pela primeira vez na escola”; “quando escrevi meu nome ensinada por minha irmã”; “quando fiquei entre os melhores em um concurso de redação”; “quando escrevia crônicas em um projeto extracurricular”; “quando fiquei fascinada pela caligrafia da professora”; “minha primeira carta ao Papai Noel”; “quando aprendi inglês com minha mãe”; “quando escrevi meu primeiro poema de amor”; “quando escrevia cartas para meus primos”; “quando me sentia livre para escrever em meu diário”; e “quando utilizava materiais novos comprados pela minha mãe”… A mais engraçada foi “a primeira palavra que escrevi foi OVO”. 😀 Uma resposta comovente dizia que “na turma de alfabetização, quando todos liam as sílabas em conjunto, sentia um sentimento de comunhão”.

Foi emocionante ter acesso às memórias afetivas relacionadas a escrever, revitalizando a ideia de que essa já foi uma prática prazerosa para eles.

Se as lembranças positivas são diversas e específicas, as negativas relacionam-se a experiências de avaliações ruins. Ser julgado traz medo e insegurança: notas baixas ou “vermelhas”, letras “feias”, erros bobos, falhas de ortografia, comparação com colegas, desespero na redação do Enem, pressão dos pais.

Time Rosa — As memórias de leituras positivas antes de entrar na faculdade trouxeram autores como Machado de Assis, Drummond, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Carolina de Jesus, Fernando Pessoa, Victor Hugo, Salinger, Saramago… Os alunos mencionaram romances, suspenses, biografias, clássicos, escritas feministas ou Lgbt, quadrinhos, ficção mágica, não-ficcção histórica, poesia. A resposta mais aplaudida foi: “Ler meu nome na lista de aprovados de um exame”. E uma das mais tocantes foi a da estudante que lembrou do pai lhe ensinando o poema “E agora José?” de Carlos Drummond de Andrade.

As leituras mais lembradas como negativas eram livros específicos (tipo, não gostei de “O mago”) e aquelas feitas por obrigação, como manuais, livros famosos (tipo “O pequeno príncipe”) ou clássicos indicados pela escola. Foi interessante um estudante que mencionou ter odiado Machado de Assis no ensino fundamental e, do outro lado do papel, escrever que depois este se tornou seu escritor preferido. Como na pergunta anterior, aqui também apareceu o trauma gerado por métodos de disciplina rígidos e ríspidos.

(Tá muito grande, então, continua na Parte 2! Spoiler: a análise do time laranja foi a mais importante, por isso o post se chama Fã ou Hater)

Sobre a proposta das aulas lúdicas: Dizem por aí que toda antropóloga é uma fofoqueira profissional. Assumo o título! Já escrevi que virei fotógrafa, jornalista, pesquisadora, professora e desenhista porque gosto de gente. Amo detalhes, nomes, histórias, gostos e desgostos. Além do mais, como professora, tenho um semestre pela frente, com o desafio de sair viva no final. Espero contagiar meus alunos nessa disciplina, já que são eles os professores do futuro. Mais ideias de aulas lúdicas aqui.

Sobre a ilustração: Fotografei quatro pedacinhos do exercício com o celular e editei no Photoshop para ficar neste formato. O scanner não conseguiu pegar as cores fosforecentes dos papéis. Então utilizei o app CamScanner para capturar as imagens. Dá para utilizar na versão gratuita e é útil para transformar qualquer pedaço de papel em documento legível. Inclusive transforma foto em texto.

Você acabou de ler “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Laboratório de escrita – Fã ou Hater – Ideia para aula lúdica (6 – Parte 1)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-40h. Acesso em [dd/mm/aaaa].