Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Coisas que nos abraçam

“Continuou sorrindo ao recordar uma história que ouvira certa vez sobre o romancista Anthony Trollope. Trollope cruzava o Atlântico na época e ouviu, por acaso, dois passageiros comentando o último episódio de um de seus romances.
“– Muito bom”, declarou um deles. “– Mas o autor deveria matar aquela velha chata.”
Com um largo sorriso no rosto, o romancista aborda-os:
“– Cavalheiros, agradeço-lhes imensamente! Vou matá-la agora mesmo.”
(Agatha Christie, Encontro com a morte, p. 5)

Há algo de mágico e engraçado nessa cena: o escritor surpreende seus leitores e, ao invés de se aborrecer, lhes oferece uma morte de presente: matemos essa velha chata agora mesmo!

Minha bolsa e minha casa são mais ou menos como a pena mágica de Trollope e Agatha: sempre temos uma soluçãozinha pra tudo. Soluçãozona não temos, porque isso já seria demais.

Elástico, band-aid, saco plástico, lenço umedecido, chiclete, clip, caneta, bloquinho, pastilha para garganta, paninho para o frio do metrô ou do hospital, papel avulso, pen drive, piranha, elástico de cabelo, creme de mão, pasta de dente, fio dental, fone, absorvente, remedinhos para dor de cabeça, dor de barriga, enjôo, gripe, inflamação no dente, torcicolo. Caderninho, máscara descartável, lixa de unha, passas, colírio, carteira, cartão do metrô extra, lenço de chorar, cartão do faz tudo da esquina, fones, mais chiclete, álcool 70% spray pequeno, brilho labial, escova de dente, chave da casa e da mãe, óculos extras, sacolinha dobrável para compras, ansiolíticos de diversas épocas e validade vencida. Às vezes tem biscoito, barrinha de chocolate, antialérgico, post-its, marcadores de página, livros.

Já tive mais: lápis de cor miniatura, adesivos de criança, fraldas, cremes de bumbum, roupinha extra pra eles, outra pra mim, lencinho de baba, brinquedinho de morder, petisco de gato, sabonete líquido, livros de colorir, plaquinha de desenhar, fita crepe.

Para o dia-a-dia, sou daquelas que tem em casa uma pasta de envelopes reaproveitáveis, sacolinhas usadas, caixa de costura, feltro para móveis, saquinho de alimentos, roupas para emprestar. Na gaveta do banheiro, tem escova de dente nova para as visitas (dica: as de viagem são as mais baratinhas), potinhos para levar xampu e cremes. De armas secretas, há uma pinça longa de selos do tipo que meu avô usava, uma ferramenta de dentista com duas pontas que resolvem problemas inesperados, furador de lombada de livro, pincel macio para espanar teclados, colas com várias finalidades, almofadas de carimbo.

Assim como guardo coisas, coleciono informações. Arquivo quase tudo (digitalmente se possível) e sei onde achar: documentos dos falecidos e dos vivos, cadernetas de telefone digitalizadas, fotos antigas, exames médicos, cartas, datas, certificados de vacina não falsificados.

Ser esse tipo de pessoa me conforta. Sempre fui assim. Não é uma questão de dinheiro nem de acúmulo. É um modo de me sentir segura. Sou minimalista: meu armário é o menor da casa — só tenho umas poucas roupas, sapatos e bolsas. Meu estojo de aquarela é o mesmo há 20 anos.

Entre os familiares, já fui zoada pela fama de organizada. Diziam: “espera você ter filho”. Tive. A bolsa de troca do meu bebê era assim. Depois falavam: “ah, quero ver com dois filhos”. Tive a segunda. Perguntem para ela. Outro dia mesmo, Alice me pediu: “Mãe, me passa a lista dos itens de viagem!” 😀

As pessoas se acostumam no bom sentido. Meus amores também já me zoaram, mas quando foi que viajaram sem um brinquedinho-surpresa, um lanche gostoso, um cobertorzinho macio? Inclusive, a ideia desse post foi do Antônio que, semana passada, precisou de um envelope de tamanho grande para guardar uma gravura. Fomos juntos no cantinho da bagunça (sim, também temos) e mostrei para ele a seção dos envelopes reaproveitáveis. “Que perfeito, mãe!” e ganhei um abraço tão gostoso.

Acho que essa cena sintetiza o sentido das coisas: nos dar um abraço de conforto que nos surpreende ou nos acolhe na hora que mais precisamos. São as batatinhas preferidas da aluna aflita, os vários tipos de chás para a mãe, o mel do Davi, o chinelo extra para a Nara, o chocolate do Vicente, a geléia do Tomaz, o biscoito da irmã, a água com gás do cunhado, o bolinho para a Jô. Tinham as castanhas do pará do Ju. Cada pessoa que chega merece um carinho.

Sobre a citação na epígrafe: Encontro com a morte, de Agatha Christie. (Trad. Bruno Alexandre, L&PM, 2011; original de 1938). Desde 2021 venho relendo todas as obras de Agatha Christie. Foi uma redescoberta porque nas últimas décadas minha coleção (incompleta) ficou pegando poeira ou sendo emprestada aos sobrinhos. Fui para o digital para dar conta! A cada livro percebo mais camadas de ironia e autoironia, assim como certas manias e referências da autora. Se gostarem do assunto, me digam que escrevo mais. Aqui no blog já tem dois posts sobre a sua autobiografia: Lições de escrita com Agatha Christie (Parte 1) e Lições de escrita com Agatha Christie (Parte 2).

Sobre o desenho: Aquarela de uma embalagem e um saquinho de chá de erva-cidreira Chá Leão. Desenho feito em caderninho Laloran em 2021. Linhas em caneta Pigma Micron 0.05; pintura com tintas da minha paleta de várias origens e alguns toques de lápis-de-cor. Na legenda à direita está escrito: “saquinho de chá depois de 1 dia secando”. Por falar nisso, esbarrei em vídeo que sugere secar esses saquinhos e utilizar o papel em desenhos. Não sei mais onde foi. Vou tentar e mostro pra vocês.


Você acabou de ler “Coisas que nos abraçam“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Coisas que nos abraçam“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3ZI. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Aceitação pelo método Cupim-Kondo

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“Quem diria que as máculas vivem e ajudam a viver.” (Frida Kahlo)

Estou passando por uma fase de auto-aceitação. Não, não fiz dieta, nem ginástica, nem ganhei prêmios.

O processo veio do luto, da passagem do tempo, dos feminismos renovados, da leitura e escuta de mulheres e pessoas negras, das dores e alegrias de assistir ao crescimento dos meus filhos e de uma simples descupinização.

Apesar de já me considerar minimalista, em janeiro e fevereiro encaramos uma descupinização (há muito adiada) de todos os velhos armários do apartamento. Foi uma verdadeira revolução Cupim-Kondo! (Na verdade, o problema era “broca”.) Tivemos que tirar tudo dos quartos, um a cada duas semanas, para não gerar risco aos gatinhos. Deu um imenso trabalho, mas foi.

Apesar de pouca, havia acumulação sim. Na parte de cima do meu armário, e mesmo nos cabides, tinha calças, saias e blusas que “um dia me couberam tão bem”, sapatos comprados para o casamento de uma prima, tecidos que “qualquer hora vou costurar”, mochilas tipo “quem sabe eu uso”, sandálias que “o sapateiro consertará”, roupinhas das crianças “que um dia eles vão gostar de rever”…

Separei apenas uma caixa pequena de lembranças para cada pessoa da casa. (Na minha, guardei as peças com as estampas mais bonitas que “um dia pretendo desenhar” rs.) No mais, doeei tudo. Contando por alto, devem ter sobrado umas 20 blusas, 6 calças, 2 vestidos, duas sandálias, 1 tênis, 3 shorts, 2 saias, alguns casacos, uns sapatos de sair. Só. Que leveza abrir o armário de manhã!

Estou num processo de aceitar que não vou voltar a ter 32 anos, que tenho sono de tarde, que durmo pior, que meus cabelos estão quase brancos, que preciso de mais tempo para ir a médicos. Em compensação, sinto-me mais confiante pra estar em sala de aula, para cuidar, conversar, acolher e saber que tudo isso me faz bem.

Há tempos sei que a vida é feita de oportunidades e escolhas. Mas confesso que, ainda assim, tem um lado meu que continua querendo agradar, me “enquadrar”, dar conta, criar regras, mesmo para as coisas boas, como ser mãe, cuidadora da casa, funcionária pública, quase-artista-escritora.  

Não é possível. É um desperdício de energia lutar contra nossa própria humanidade. Preciso de tempo pra chorar, pra dormir, ir ao banheiro, namorar, pegar o ônibus e o metrô, viver sem me atropelar (tanto).

Que possamos, como ouvi no evento de ontem, “não desistir de resistir”; não desistir de lutar, aprender, mudar, rever e até, quando for o caso, de aceitar.

Sobre a citação: A frase da Frida Kahlo que abre o post está no livro “Frida Kahlo: uma biografia”, escrito e ilustrado por María Hesse (ed. LP&M). Ganhei essa preciosidade (é lindo demais!) de surpresa, de um amigo a quem ofereci um livro que descobri ter duplicado (na grande missão Cupim-Kondo que se espraiou pelas estantes também).

Sobre o método Cupim-Kondo: o nome é uma brincadeira com a Marie Kondo, organizadora profissional que ficou mega famosa com a série da Netflix sobre seu método. Li os livrinhos dela emprestados e gostei principalmente do segundo. Não tive paciência de ver a série toda porque sinto náuseas com o consumismo excessivo das famílias de classe média norte-americanas (apesar de um ou outro episódio ser melhorzinho).  Com a necessidade da descupinização, percebi que eu estava em estado de negação, que precisava de ser mais humilde. Mesmo me achando “super organizada”, vi que guardava coisas que não tinham mais sentido, numa tentativa de voltar a ser alguém que não serei mais.

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Sobre o desenho (na verdade, pintura): Aquarela “para relaxar”, feita sem compromisso com o resultado, em dezembro/2018. Cores diversas pintadas sobre um círculo feito a lápis (depois apagado; no original aprox. 11 x 11 cm) no verso de um papel Canson XL Aquarelle. Escaneei, aumentei um pouco o contraste para ficar mais próximo do orginal e montei em várias repetições no Photoshop.

Podem deixar que não esqueci do calendário: prometo postar até domingo!

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2019. “Aceitação pelo método Cupim-Kondo”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3K2. Acesso em [dd/mm/aaaa].