Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Junho/2022 – Viver é preciso

“Uma única pessoa está ausente, mas o mundo inteiro parece vazio.” (Phillipe Ariès)

“E então… não mais. (…) o que chamamos de luto é como estar em um submarino, em silêncio sobre o leito do oceano, sentindo a carga da profundidade, ora perto, ora longe, açoitados por recordações. (…)

Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina. Em uma batida do coração. Ou na ausência de uma. (….) Eu queria gritar. Eu queria que ele voltasse.” (Joan Didion)

No dia 9/4/2022, às 11:50h da manhã, faleceu meu companheiro de amor e de vida, Juva Batella. Ao contrário da Joan, que passou seus primeiros meses de luto tentando entender se havia algo que ela pudesse ter feito para evitar a morte do marido, sinto-me serena quanto à inevitabilidade do que ocorreu. Não havia nada que alguém, máquina ou medicamento pudesse ter feito. Ele precisava da cirurgia, ele marcou a data, e fomos avisados dos imensos riscos.

Minhas tempestades são outras: acordo com a certeza de que ele ainda está aqui, e já não está; lembro que preciso lhe contar o que está acontecendo, e já não posso. Tudo dói uma dor sem remédio, porque não há sorrisos e abraços dele à venda nas farmácias. Seus áudios no Whatsapp soam menos reais a cada dia. Havia tantos planos — nossa rede, nossa varanda –, e já não há.

É preciso reaprender a viver, ser, sentir, pensar, falar… É como se as bordas do mundo que eu conhecia tivessem desaparecido. Sinto-me no oceano de que fala Didion, mas em mar aberto, sem os contornos de um submarino ou de alguma terra à vista.

Ao mesmo tempo, não estou só. O Juva — como falarei no próximo post — foi a pessoa das pessoas. Deixou-me numa ilha cuidadosamente povoada por seres que o amavam, aquecendo o meu coração.

A cada um dos “navegantes e navegantas”, como ele escreveu, agradeço o imenso carinho, sem o qual eu não poderia estar aqui, tentando seguir. Na mensagem que mandou à família, amigos e alunos avisando da cirurgia, terminou por me deixar instruções sobre o que fazer:

“A Karina vai cuidar de vocês, este grupo de amigos do coração, mandando-lhes as novidades acerca do andamento do update [do coração].

Navegar é preciso. (Mas viver também é preciso.) Pensem em mim. ♥”

Cá estou, procurando as palavras e “cuidando de vocês”, escrevendo as “novidades” que eu não queria escrever, vivendo a vida — porque “é preciso” — e pensando nele, com todo amor do mundo, pra sempre.

E amanhã começa o mês de junho, que segue no arquivo PDF em alta resolução para baixar e imprimir.

Relendo os últimos posts, me surpreendi que minhas prioridades para 2022 continuam válidas, ainda que a vida tal como eu conhecia tenha desaparecido. Registrei: “preciso manter a saúde física, mental e artística em dia — e não esquecer disso depois do Carnaval”. O que eu não imaginava era o significado desse “carnaval”, uma época de inversões e liminaridades festivas que se assemelha tanto ao tempo da morte, como a antropologia nos ensina.

Ainda não estou “do outro lado” do meu luto. Mas 52 dias, 8 horas e dez minutos depois, estou aqui escrevendo, já tendo pintado uma aquarela, desenhado um padrão de corações, feito três sessões de terapia e duas de musculação. É um degrauzinho.

Bom junho para todos, com amor, saúde e paciência. ♥

Sobre a citação: Os trechos das epígrafes estão no livro “O ano do pensamento mágico”, de Joan Didion (Harper Collins, 2021, tradução de Marina Vargas).

Sobre o desenho: Aquarela feita em papel Canson Montval (cortei uma folha grande em pedaços A4). Molhei o papel e fiz manchas nos tons de lilás, pincelando com outras cores. Achei que ia seguir os processos anteriores, trabalhando no app Procreate, mas minha canetinha do Ipad quebrou (não carrega, não funciona :/ ). Lembrei da minha velha plaquinha de digitalização Wacom Intuos que graças às deusas funcionou direitinho associada ao Photoshop (mencionei essa compra de 2019 aqui). O processo foi o mesmo dos demais calendários desse ano: mantive duas camadas da aquarela sobrepostas, uma mais escura por cima de uma mais clara. Depois desenhei as linhas dos corações apagando a camada de cima com a canetinha eletrônica (modo lápis-borracha no Photoshop). Para a grade do calendário, adaptei as de 2021 como sempre. 

A estampa de corações foi baseada em um desenho que fiz para o Juva quando ele estava em Portugal. Minha inspiração foram as aulas da artista Neha Modi, que assisti no Skillshare em janeiro. Vocês podem ver o trabalho dela no Instagram @expressionsbyneha.

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2022. “Junho/2022 — Viver é preciso“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3UJ. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Os afetos que nos movem

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“Professora Karina!
Escrevi para você por e-mail no início de 2019. Conversamos sobre as durezas dos nossos tempos, desde o incêndio do Museu. Te contei do que mamãe me falava sobre fragmentos de felicidade e de como seu blog cumpriu um papel fundamental na minha saúde emocional de pesquisador.
Essa madrugada eu terminei o texto da dissertação. Tudinho. Pronta para imprimir. E na hora lembrei de todos os textos que você já escreveu e que serviram como abraços para nós, jovens cheios de incerteza sobre a qualidade do que fazemos.
Queria reafirmar a você o quanto seus textos foram importantes para me convencer a acreditar em mim mesmo. Muitíssimo obrigado, professora Karina! Você cumpre um papel indispensável e de excelência na academia brasileira”

Recebi esse texto hoje e não pude deixar de me emocionar. Normalmente não compartilharia aqui um elogio a mim mesma, mas relevem: estou merecendo.

Na semana passada, fui jogada de um barco em alto mar. Foi um susto, uma violência? Foi. Mas sou grandinha e sei nadar. Tô ferida-viva, aquecida pelas mensagens de carinho e conseguindo fazer uma das coisas que mais amo no mundo: escrever e desenhar para compartilhar com vocês.

Respondi ao jovem da mensagem com o maior sorriso que encontrei dentro de mim. Agradeci cada palavra e disse aquilo que um dia tanto me ajudou na tempestade que foi o meu doutorado: “Parabéns por finalizar a sua dissertação. É sua, é seu trabalho; é algo que ninguém nunca vai poder tirar de você.

E completei: nos momentos difíceis, cada vez mais acredito que o caminho é a gente se doar — compartilhar coisas e conhecimentos para, quem sabe, facilitar a vida de quem estiver precisando.

No meio da nossa conversa, que seguiu por muitos parágrafos, ele mencionou um verso da música do Caetano Veloso, “Desde que o samba é samba”. Cito duas estrofes:

“Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora”

“O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
O samba é pai do prazer
O samba é filho da dor
O grande poder transformador”

Sem que eu precisasse explicar nada do que estava acontecendo comigo, ele escreveu:

“A família por vezes faz com que passemos por momentos delicados. Eu desejo de todo coração que tudo isso passe, passe logo, e que enquanto isso não acontecer, que você tenha serenidade para lidar com aquilo que escapa ao seu controle.

Junto com a terapia, a meditação foi um outro instrumento que me ajudou a cuidar de mim. Às vezes, a única coisa que o dia pede é essa lição de sentar, respirar e observar nossas dores. E no fim, conseguimos até valorizar nossos fragmentos de felicidade, mesmo quando tudo fica ‘demorando em ser tão ruim’.

O que afaga o coração é olhar para o lado e ver que os afetos seguem nos movendo. Talvez essa seja das coisas mais doloridas, mas igualmente mais fascinantes da condição humana. (…) Talvez o melhor caminho seja ser mais fiel às nossas vontades do que aos nossos medos.”

Como eu poderia escrever melhor? Que presente ler algo tão significativo. Quanta sabedoria numa pessoa que acabou de passar por processos difíceis.

Quanto estamos em sintonia conosco, as pessoas e as portas certas parecem nos encontrar e se abrir sem esforço. Quando não, tudo parece demorar em ser tão ruim…

Como saber se estamos diante da porta certa? Para mim, é quando encontro um sorriso íntimo, um suspiro gostoso, uma vontade de cantar um ‘samba transformador’. Mesmo que o mundo lá fora diga não. Respondi para ele (e pra mim): “Fique atentos. Quando o coração bater de alegria, presta atenção. Quando bater de alívio, porque algo tava pesando, presta atenção também. É nisso que tenho pensado nesse momento.

Diante da tsunami e do mar sem boias, precisamos nadar e buscar novos sentidos para nos sentirmos inteiros. (Tem receitinha-lembrete no post da semana passada).

Meu desejo para vocês que estão terminando suas dissertações e teses nesse momento: força, calma, clareza, compaixão, paciência, e um pouquinho de disciplina, que não faz mal à ninguém. E lembrem-se do nosso mantra: “vai passar”.

Boa sorte, pessoal! Saibam que cada um de vocês importa, cada pesquisa importa, cada parágrafo que produz conhecimento sobre esse nosso mundo doido importa!

Coisas impossivelmente-legais-bonitas-emocionantes-e-dignas-de-nota da semana:

♥ A vitrola antiga-nova da Alice está a mil alegrando a casa. Ela está ganhando e comprando vinis, de João Gilberto a Diana Ross. ☺

♥ Visitamos nossa amiguinha do peito Helena e saímos de lá com uma foto polaroid. Que coisa fofa!

♥ Fomos ao teatro ver a última sessão da temporada de Novos Baianos – O musical. Emocionante! É indescritível de tão lindo o trabalho dos atores-bailarinos-músicos. Não percam quando o espetáculo voltar ao Rio.

♥ Encontrei ex-aluna, ex-colega de departamento, amiga de infância, amigas de internet, amiga de trabalho, amiga de desenho, amiga de bairro, prima, irmã, mãe, titia. Mulher é um bicho bom demais, gente. Mulheres maravilhosas, obrigada! ♥

♥ Para não desqualificar a categoria como um todo, vamos lá, tenho que admitir: quatro homens foram engraçados, gentis e solidários, sendo um deles o que me escreveu as mensagens desse post.

♥ Tento tentado postar diariamente nos stories do meu Instagram. Consegui redesenhar e pintar à mão a logomarca que aqui no blog ainda estava na versão original do App. Agora ficou assim:

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Sobre o desenho: Esse jovem no metrô é parte do meu projeto 50 Pessoas em Aquarela (estou na pessoa 21/50). Linhas feitas por observação direta no Metrô do Rio, voltando tarde da noite. A canetinha foi uma Pigma Micron 0,05 de nanquim permanente. O caderno foi um bloquinho Hahnemühle como esses aqui. Adicionei as cores em casa, com as aquarelas que estão nessa paleta. Depois escaneei e limpei as sombras do papel no Photoshop. O rapaz bonito estava entretido com um grupo de música cujo aparelho de som estava bem ao seu lado no chão.

Você acabou de ler “Os afetos que nos movem“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2020. “Os afetos que nos movem”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3Q8. Acesso em [dd/mm/aaaa].