Há semanas, meses, anos, a rua onde moro vive em obras. Dizem que aqui passava um rio, e por isso todos os fios entram em curto e todas as manilhas se rompem. As britadeiras começam às 8 horas da manhã, mesmo aos domingos. As crianças e os gatos sufocam com o barulho.
Tento consolá-los dizendo que os operários lá embaixo estão sofrendo mais. Além da obra-em-si e seus ruídos, os motoristas se atracam às buzinas e os funcionários de trânsito bufam nos apitos, ambos numa ansiedade insana.
Fujo do caos, a pé, rumo ao metrô para dar aula no IFCS. Converso com os alunos, vemos juntos Debrets e Salavisas antes de partirmos para a rua. Nos abrigamos num pequeno largo dentro do Largo da Carioca para observar os passantes. Ficamos noventa minutos em paz. Exercícios fáceis com lápis de cor: acompanhar o movimento, riscar o papel. Sem modelos, sem compromissos. Depois desafios, formas, volumes, tempo livre. Voltamos para admirar os cadernos, beber água e conversar.
Saio do metrô com o céu já escuro para atravessar os 750 metros que faltam até a minha casa. Vejo um guarda municipal chutando cones e explodindo contra os carros que avançam na contramão. Quero rir, mas tenho pena.
E então vejo aqueles velhos baldes da obra se transformando em luminárias; as faixas dos tapumes brilhando no escuro. Meus olhos estão com as lentes dos desenhos da tarde.
Isso nunca me acontece — porque sempre morro de preguiça — mas aconteceu: resolvi pegar o caderno em casa e voltar para desenhar a cena. Achei um cantinho, encostada na grade de um prédio. Tentei calcular os espaços dos tapumes e agradeci por serem seis: três para cada lado do caderno, ufa.
As placas me comovem. Os pedestres são jogados para o nada: não há passagens, só asfalto e carros zunindo. Para onde vai aquela seta? Lembro do operário com quem conversamos outro dia. Há algo de surrealista na placa amarela: uma obra “a 20 mts” grudada nela mesma. E aquele quinto tapume, o único pichado? Foi Banksy quem mandou colocar?
Tudo isso junto foi a metáfora perfeita para a minha vida atual: em obras, a passo de pedestre, um dia de cada vez.
…
Sobre o desenho: Desenhei por observação com uma canetinha de nanquim permanente Micron 0.05 num caderno Molesquine formato paisagem. Já em casa, acrescentei as cores com aquarela e lápis de cor. Não tive coragem de fazer a noite por trás de tudo… Talvez por isso os baldes do desenho não cheguem nem perto do brilho que tinham os observados. Mas, fazer o que? Ainda estou em obras… Escaneei cada uma das páginas do caderno e depois juntei pelo meio com Photoshop. Como não tenho muita paciência, cortei as margens, que denunciavam a montagem tosca.
12/04/2014 às 13:16
Karina Linda,
ver beleza no caos é só pra quem tem a Belezura dentro, como vc.
Nós todos em obras sempre, por dentro e por fora! Graças a Deus!
Bjs e obrigada pelo prazer meu de cada semana.
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11/04/2014 às 16:27
Querida Karina,
Lindo texto – e otimista: afinal, estamos todos em obra – sempre (desconfio), o que é muito bom. Beijo!!!
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11/04/2014 às 16:43
obrigada, querida amiga! Sim, sempre em obras, por dentro e por fora! A surpresa para mim foi ter conseguido ver alguma beleza nesse caos sujo e barulhento… 🙂
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11/04/2014 às 09:54
Genial Karina! beijos
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11/04/2014 às 12:12
obrigada, querida!!
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11/04/2014 às 07:40
Que honra Karina! Ser mencionado na Academia e junto a Jean Baptiste Debret! Para quando uma conferência aqui em Lisboa?
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11/04/2014 às 12:13
haha! Você é o nosso Debret da atualidade, Eduardo!!
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13/04/2014 às 13:12
(________) (eu a rir de boca aberta com gosto)
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