“…se tivermos o hábito da liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos… (…) Trabalhar assim, mesmo na pobreza e na obscuridade, vale a pena.” (Virginia Woolf, Um teto todo seu)
Para milhares de pessoas, maio não é o mês do outono, dos taurinos, da crise… é o auge da temporada da série Preciso-Escrever-Meu-Projeto-de-Doutorado-Perfeito. Na maioria das áreas de ciências humanas, está todo mundo tentando finalizar um projeto estruturado, redondo, consistente, se-deus-quiser-aprovado-com-bolsa!
Como não tenho como ajudar a todos que me procuram, resolvi contar aqui algumas experiências nesse front. São episódios que me ajudaram (e ainda ajudam) a pensar o que é realmente essencial para criar um projeto.
* Paixão — Imaginem que logo nos primeiros meses da minha vida acadêmica descobri que a escolha de um tema de pesquisa era um caso de vida ou morte. Ok, não exatamente morte-morrida, mas aquela morte social básica, em que você é banido, ie, morre para o mundo, como nos ensinaram o Elias, o Dumont, o Geertz e tantos outros. Pois lá estava eu no final do primeiro ano de mestrado, já “escolhida” pelo orientador, mas sem tema de pesquisa. (Sim, bons tempos… nem falem.)
Pensa daqui, pensa dali, resolvi que queria ser útil para a sociedade estudando os parlamentares municipais (um tema bem estranho na antropologia da época, que surgiu do meu trabalho de jornalista). Ao saber da minha escolha, o Gilberto (Velho) reagiu horrorizado. Fez uma cara de nojo e disse que não, não poderia me orientar de jeito nenhum! Senti o sangue descendo, o coração parando, o exílio chegando. Mas, para minha surpresa, consegui murmurar: “– Que pena. Vou ter que procurar outro orientador.”
É verdade, tenho testemunha. Uma amiga estava pelos corredores do Museu e me amparou. Graças à nossa conversa, me dei conta de que estava no caminho certo: eu tinha um projeto em que acreditava, e estava até pronta para “morrer” por ele. E não é que, no dia seguinte, o Gilberto me ligou dizendo que ia me “aceitar” de volta, com parlamentares e tudo? Lamentava que eu não desse continuidade à pesquisa que ele tinha pensado… E eu precisava entender que ele tinha aversão a surpresas etc. Mas, cá entre nós, acredito que o projeto se salvou mesmo pela paixão com que me dispus a defendê-lo.
* Paciência — Um ano e meio depois, ao invés de navegar nas primeiras ondas da passagem-direta mestrado-doutorado, optei por terminar a dissertação. Defesa feita, entrei no melhor dos mundos: dava aulas, trabalhava como pesquisadora e ainda podia assistir Seinfeld sem culpa! Mas quando chegou a hora de fazer o projeto de doutorado: cadê a ideia? Sem paixão, mas convencida de que já dominava os truques do ofício, costurei um projeto juntando alguns temas que sobraram do mestrado com autores que eu lia para dar aula. Nem precisava me preocupar com o quesito “orientador”, certo?
Errado. Projeto entregue. Projeto lido: “– Karina, vem cá, que projeto é esse? De onde você tirou isso? Cadê a antropologia?” Cadê isso, cadê aquilo…? Ooops. Foi mal. Tem razão. Dessa vez, não tinha nada a ver com escolha de tema. Era projeto-preguiça mesmo.
Bora fazer tudo de novo. Porque certa vez um terapeuta me disse que eu era uma sobrevivente. Pra quê! Me apeguei a essa ideia. Se tem um naufrágio, eu nado, até sem saber nadar. E, pra quem sobrevive a afogamento, projeto-de-doutorado-ruim tá mais para quatro-pneus-furados ao mesmo tempo… É chato, é trabalhoso, mas dá para consertar.
A solução? Muita, muita paciência. Paciência com os próprios erros e paciência para recomeçar… Teve que ser paixão construída… Revi o material de pesquisa do mestrado, escutei novamente as arguições da defesa, vasculhei todos os autores que pude e lá fui enfrentar a página vazia, de domingo a domingo — naquela fórmula chata-de-tão-verdadeira: uma palavrinha de cada vez.
* Prática — Tive a sorte de praticar num “laboratório” no Museu Nacional onde encontrava exatamente a mesma cena todos os dias de manhã: meu orientador lendo. Lendo, relendo, revisando, escrevendo sobre o que lia, reescrevendo. Da mesma forma, quando frequentei a biblioteca da professora Cleonice Berardinelli, frequentemente a encontrava concentrada com um livro nas mãos. Uma vez o título era o clássico “A cidade e as serras”, de Eça de Queirós — autor sobre o qual ela é uma grande especialista. E perguntei: “Dona Cleo, a senhora precisa reler esse livro para dar aula?” E ela me respondeu com toda humildade: “Sim, querida. Releio, e sempre aprendo coisa novas.”
Aprendi com eles que a prática essencial na nossa área é assim, muito simples: ler e escrever. Ler, ler, ler, ler, ler muito, é equivalente a um aluno de violão tocar “Let it be” mil vezes. É um trabalho individual, solitário, onde se aprende a lidar com o tédio, a perceber as nuances das palavras/acordes, a criar novos pensamentos e perguntas a partir daqueles. Escrever, escrever, escrever, escrever muito. Idem, ibidem.
Sim, dá para treinar algumas etapas de pesquisa na sala de aula. Mas, como dizia o meu amado professor Wagner Teixeira: “A prática se aprende na prática; o importante [na faculdade] é aprender a pensar.” Ou seja, pesquisa de verdade só se faz fazendo. Um trabalho de fôlego exige circunstâncias demais, impossíveis de repetir em laboratório.
É para isso que servem os livros: milhões de páginas já foram escritas sobre milhões de pesquisas. Um bom levantamento bibliográfico, quando lido, te leva a centenas de práticas e reflexões sobre essas práticas. É a nossa escala musical diária, sem a qual não desenvolvemos projeto nenhum.
* Um projeto todo seu — Nos mais de vinte anos depois daquela primeira experiência, muitas vezes tive dúvidas. Será que está bom? Será que vão gostar? Será que já não escreveram isso antes? Será que serve para alguma coisa? Essas dúvidas nunca se dissolvem totalmente…
“Desde que vocês escrevam o que desejarem escrever, isso é tudo que importa; e se vai importar por séculos ou apenas horas, ninguém pode dizer.” (Virgina Woolf, Um teto todo seu)
E para não terminar sem nenhum conselho prático de verdade, aí vai: a melhor coisa que já li sobre montagem de projetos é o clássico Como fazer uma tese, de Umberto Eco — baita de um livrinho perfeito, atualíssimo em toda a sua antiguidade.
…
Ufa, e se chegaram até aqui: meus votos de sucesso aos novos projetos! Estou torcendo por vocês!
…
* Sobre o desenho: Dizem os profissionais do livro ilustrado que a boa imagem deve acrescentar algo ao texto… Então vou deixar para vocês interpretarem… Os gatinhos foram feitos com aquarela Winsor & Newton em papel Strathmore, e depois desenhados com canetinha nanquim Muji 0.38.
* Sobre o livro: Já fiz um post só sobre Um teto todo seu da Virginia Woolf, um livro que marcou a minha vida pra sempre.
* Sobre Paixão, paciência e prática: Minha inspiração para escrever sobre esses “três Ps” foi da aula online do artista indiano Prashant Miranda, na Sketchbook Skool (infelizmente é só para alunos pagantes… )
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17/11/2019 às 14:59
Karina vc me ajuda tanto… seu blog é um abraço carinhoso pra quem está começando nesse caminho acadêmico. To no meio da dissertação do mestrado e qd não consigo engrenar venho aqui me inspirar e lembro do por que das minhas escolhas. Obrigada por compartilhar sua experiência ! Abraço forte !
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10/01/2020 às 22:28
Que legal seu comentário, Ana. Muito obrigada!! Tudo de bom na sua vida acadêmica — não esquece de se divertir e manter a saúde. Abç! ♥
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15/04/2018 às 12:17
“Mas quando chegou a hora de fazer o projeto de doutorado: cadê a ideia? Sem paixão, mas convencida de que já dominava os truques do ofício, costurei um projeto juntando alguns temas que sobraram do mestrado com autores que eu lia para dar aula. Nem precisava me preocupar com o quesito ‘orientador’, certo?”
Euzinha agora hahaha
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18/04/2018 às 15:39
😀
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14/09/2016 às 22:10
Karina,
muito obrigado por essas palavras. Eú já tinha lido esse texto uma vez quando estava atrás de dicas. Aqui estou no momento de escrita do projeto, sem saber pra onde ir quando lembrei que seria bom relê-lo…
Acalmou o coração!
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16/07/2015 às 14:43
Estou nessa fase do projeto, seu texto me deixou muito mais calma. Parabéns pelo blog que é lindo 😀
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21/07/2015 às 11:56
Obrigada Maryana — e muito boa sorte no seu novo projeto!!
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28/07/2015 às 17:31
Eu agradeço, seu blog tem me ajudado muito a encarar o mundo acadêmico de uma forma diferente, melhor e mais leve.
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02/06/2015 às 17:43
Minha talentosa amiga… que delícia de texto… serve de inspiração também para quem, como eu, quer escrever (livro, não dissertação!) e não sabe por onde começar rsrsrs…. obrigada pela inspiração! beijos & saudades.
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23/06/2015 às 12:29
Linda, muito obrigada (com atraso!) pelas suas palavras de incentivo! Escreve sim, escreve muito, que você é uma inspiração para mim também!
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28/05/2015 às 06:33
gostosura!
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23/06/2015 às 12:37
obrigada, querida!!
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27/05/2015 às 23:06
Kau,
Como está bem escrito!! Adorei o texto, muito rico em todos os sentidos. Te acho um gênio. Os filhotes tem bem a quem puxar!!! Te amo, Mamãe
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23/06/2015 às 12:37
❤
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