Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas

Nosso Apocalypse Now de todo dia

14 Comentários

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O que é melhor: estar correta ou ser gentil?; ter certeza ou compaixão?; indignar-se ou dialogar?

Tantas e tantas vezes optei pelas segundas respostas: gentileza, compreensão, diálogo… São valores que aprendi a amar, mesmo sabendo seu custo. Em algum momento da vida me disseram e eu acreditei: enquanto há palavra, não há guerra.

Será? Quantas injustiças somos capazes de suportar com doçura, compaixão e diálogo? Até quando seremos tratados como lixo respondendo com serenidade, choro ou apatia?

Sei que preciso continuar acreditando que educação, delicadeza, arte, ciência, política, amor e empatia podem construir um mundo melhor para todos os seres. Mas às vezes o vidro embaça, o pneu fura e o macaco quebra.

Trouxe esse colar para abrir o post porque ele vem de um lugar mágico. Tem pessoas, abraços, caminhos enrolados, rotas curtas e longas, paciência, fogo, cor, brilho e sombra.

Minhas últimas semanas, sem posts, foram assim. Pesadelos com o Google, com a Net, com a Lola doentinha, com as gaiolas nos EUA, com as denúncias de assédio na antropologia e principalmente, muito principalmente, até para quem detesta advérbios, o uniforme escolar atravessado de bala e sangue… as perguntas do filho para a mãe, tanta dor nessa morte assassina do Marcos Vinícius, na Maré, RJ.

Fiquei só com rascunhos, sem frases, porque o ditado também vale ao contrário: onde há guerra, não há palavra. Aqui é um Apocalypse Now todos os dias.

De alguma forma, escrevi sobre tudo isso um pouco antes, a convite da querida Mànya Millen, para o blog do IMS. A pauta era desenho e cidade — o que me levou a explicar por que não consegui me tornar uma Urban Sketcher no Rio de Janeiro. Sabia que seria um pouco polêmico, mas agora acho que peguei foi leve… Aí vão desenho e link:

Desdesenhando o Rio – https://blogdoims.com.br/desdesenhando-o-rio/

Karina Kuschnir IMAGEM IMS Post Urban Sketchers Rio de Janeiro

Desenho Karina Kuschnir para o Blog do IMS

Não tenho ideia de quantas pessoas leram a publicação, mas houve uma sequência interessante. O Nexo Jornal repercutiu o post fazendo uma matéria própria sobre os Urban Sketchers, selecionando imagens de desenhistas brasileiros e comentando minha posição crítica. Pena que preferiu utilizar na abertura o clichê de sempre: o Rio de Janeiro do cartão postal. Nada contra a bonita aquarela da Eliane Lopes (que não conheço pessoalmente). Tudo contra continuarmos re-produzindo visualmente esse cenário fake, pois na cidade real, que vive nessa moldura, há pessoas que fuzilam crianças do alto de um helicóptero. Apocalypse Now não é metáfora.

A matéria do Nexo: A comunidade global que compartilha cenas de cidades em desenhos

Para ajudar a população da Maré, conheçam, se envolvam e contribuam para os maravilhosos projetos da Redes da Maré. Não deixem de ler o texto sobre a ilegalidade do Caveirão Voador que, no dia 20/06/2018, foi responsável pelo assassinato de 7 pessoas, entre elas, dois adolescentes. E quantos outros morreram a bala no Rio desde o dia 20?

Para terminar com as contradições da dor e do amor, meus posts com a tag Urban Sketchers, grupo que admiro demais, que vem me ensinando muito do que sei sobre a experiência de desenhar, que me acolheu e onde fiz grandes e amados amigos e amigas de todos os cantos do mundo.

Meu problema não é com os USK; é com o Rio de Janeiro, com o Brasil, com todas as formas de invisibilizar as desigualdades que tanto precisamos corrigir, sanar, ao menos, reduzir! E uma das formas de começar é se permitir olhar, ver, enxergar (sequência bem dita da querida Andréa Barbosa). Precisamos enxergar e desenhar não apenas formas e cores, mas onde, quando e como as pessoas estão vivendo no mundo.

Como diria a Alice: — Super fácil esse negócio de ser antropóloga, mãe!

Sobre a complexidade de Apocalypse Now, filme de Francis Ford Coppola, inspirado na obra de Joseph Conrad, sugiro o verbete denso e interessante (em português!) da Wikipedia.

 

Sobre o desenho: Colar feito de corda com pendente esmaltado, obra de artesãos da escola de arte comunitária do Chapitô, em Lisboa. Desenho no verso de um papel Canson (bloco Aquarelle). Linhas feitas com uma canetinha de nanquim permanente descartável Pigma Micron 0.05 bem velhinha (daí serem tão finas). Cores pintadas com aquarelas Winsor & Newton e um pouquinho de tinta guache branca na área de brilho. Tudo nesse desenho é paciência, camadas leves, e um pouco de coragem na hora das sombras. Essas têm de sair de uma vez só para ficarem naturais… Costumo usar o meu melhor pincel, um Winsor & Newton series 7, n. 2, pois assim carrego tinta o suficiente para não interromper as linhas no meio.

Você acabou de ler “Nosso Apocalypse Now de todo dia“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2018. “Nosso Apocalypse Now de todo dia”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3Fr. Acesso em [dd/mm/aaaa].

14 pensamentos sobre “Nosso Apocalypse Now de todo dia

  1. Karina, te mando um abraço sincero. A raiva é um sentimento mal visto, mas também é necessário. Tenho parado de ignorar esse sentimento, porque às vezes é bem isso que você falou, nos cansamos dos caminhos de compreensão, diálogo e doçura. Às vezes precisamos da raiva mesmo.
    Fico muito triste por tudo o que tem acontecido no Rio. Tenho amigos queridos que moram aí, então acompanho um pouco “de perto” tudo o que você comenta e dói o coração.
    Mas continuemos! Isso também é necessário.

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    • Muito obrigada pelo carinho, querida! É extremamente desgastante — beira o desespero — ver essas dezenas de mortes violentas de inocentes e não poder fazer nada… É como se nossas esperanças morressem junto… Felizmente, em agosto estou voltando para a sala de aula e isso me deixará com a sensação de que estou fazendo algo útil! 😉

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  2. Olá Karina. Estive agora a ler o teu texto sobre o Rio e os seus sketchers. Um texto muito corajoso e, como sempre, bem escrito e lindo. Das duas vezes que fui ao Rio gostei, mas sentimo-nos sempre inseguros. E é uma pena!

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    • Eduardo, muito obrigada pelas leituras e pelo comentário generoso. ♥ A situação no Rio e no Brasil só piora, especialmente para as populações mais vulneráveis. Tivemos até uma vereadora assassinada aqui na capital, a Marielle Franco, morta à queima roupa, assim como seu motorista Anderson Gomes. Parece-me importante nesse momento tão grave não glorificarmos a ideia de cidade maravilhosa… No processo de rever para mim mesma a imagem da cidade, percebi o quanto o conceito de “mostrar o mundo, um desenho de cada vez” que está no manifesto dos Urban Sketchers vem trazendo uma leitura de “mundo” muito específica. Na maioria das vezes, vemos nos desenhos apenas o mundo bonito, limpo, colorido, urbanizado e “fofinho” das cidades ricas da Europa, EUA e Ásia (exceto nos trabalhos mais voltados para as imagens-reportagens). Como afirmo no post, essa é apenas uma ponta de reflexão, no sentido de somar, de pensar como agregar outros “mundos” às experiências de desenhar, sendo menos cegos para o que não é tão bonito de se ver e registrar… Abraço apertado pra ti!!! ♥

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      • Totalmente de acordo. Como diz um amigo meu, esses desenhos de só fazer o bonito são uma aldrabice. Por cá, por Portugal, vamos sabendo de todos esses atentados à democracia, e ficamos apreensivos. Gosto muito de um desenhador de S.Paulo, João Pinheiro, que mostra a cidade nas suas contradições. Beijos.

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      • sim, também admiro muito o trabalho do João Pinheiro, que tive o prazer de conhecer naquele evento mágico de Lisboa, em 2011 ♥

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  3. Foi através de você que fiquei sabendo dos sketchers. E adorei tanto a ideia que hoje sou uma desenhadora também. Acho que é uma forma criativa de se apropriar e de refletir sobre a cidade. Entendi sua crítica -ainda mais com o estado das coisas-, mas conheço a Eliane e o pessoal e é injusto relacioná-los a uma visão estereotipada da cidade. Não é verdade! É que, sabe como é, o Rio continua irresistível….
    Gosto muito de você!
    Bjka
    Cecilia

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    • oi Cecilia, super obrigada pelo comentário. Como expliquei no post, eu também amo os Urban Sketchers e acho lindo desenhar a cidade. Minha crítica nesse momento foi ao Nexo Jornal por repercutir o meu post reforçando a imagem do Rio de Janeiro como uma “cidade maravilhosa”, como se a maioria da população não estivesse refém da violência… Em relação à Eliane: eu digo no post que ela fez uma bela aquarela!

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  4. Para uma melhor arte no Rio, moldura e tela seriam a solidariedade e empatia das pessoas umas com as outras.
    Esses seriam os ingredientes imateriais pra se fazer arte em locais onde a vida … sobrevive.

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  5. ô querida, foi e é exatamente isso, estamos vivendo no absurdo, em contrários. Queria deixar uma mensagem capaz de salvar da desesperança, mas faço das tuas não palavras as minhas. Um forte abraço

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    • muito obrigada, querida. Que dureza esse nosso país, né? Mas enxergar é preciso… Abraço apertado pra ti também. ♥

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  6. Não sei se ajuda, mas somos muitos inquietos com tudo isso… Continuo tentando acreditar que precisamos tentar ir em frente, nem que seja pra questionar: “vocês estão vendo isso aqui e tão achando normal? Mesmo?”

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    • sim, Mariana, exatamente! é muito difícil estar anestesiado para tantos horrores que estão acontecendo… até quando?? Obrigada pelo apoio e pelo comentário ♥

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