Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Imperfeições

Juva

“Caminhou quase todo o dia sem lhe acontecer coisa merecedora de ser contada; com o que ele se amofinava, pois era todo o seu empenho topar logo logo onde provar o valor do seu forte braço. Dizem alguns autores que a sua primeira aventura foi a de Porto Lápice; outros, que foi a dos moinhos de vento; mas o que eu pude averiguar, e o que achei escrito nos anais da Mancha, é que ele andou todo aquele dia, e, ao anoitecer, ele com o seu rocim se achava estafado e morto de fome; (…)” (Dom Quixote, Cervantes)

Por boa parte da quarentena, senti-me assim: vagando, seguindo, trabalhando e terminando os dias estafada e morta de fome — não de comida, mas de esperança e sentido.

O caminhar de Quixote e seu cavalo (rocim) nessa passagem me lembra a sensação de navegar a esmo nas redes no primeiros meses da pandemia. Parecia impossível abandonar as telas, as informações, as próximas datas, o término logo ali, bit após bit.

E nada disso veio. Para quem acredita em ciência, foi preciso aceitar que a solução não estava (e nem está) na esquina. Teremos que seguir todos os dias tentando não adoecer. Não é hora de sair de casa (se isso for uma opção).

Aqui, ficamos doentes, os resultados foram negativos, mas continuamos cumprindo as regras. Passou o pânico individual, mas não o horror pelas vidas perdidas.

Agora estamos numa nova fase, tentando reiventar os significados das coisas: da casa, do cuidar, do trabalhar e do criar. Precisamos caminhar, com todas as dores que nos acompanham, apesar de. Como disse a Aline:

“Mãe solteira, minha gente, somos um eterno ‘não vou conseguir’ enquanto vamos conseguindo.” (Aline Passos, no Twitter)

Achei lindo e que vale pra tudo: escrita, tese, trabalho, desafios. Precisamos entender as dificuldades, mas seguir seguindo. (Sigam a Aline, ela é incrível.)

E para meu próprio espanto, vencendo mais uma vez a timidez: hoje (15/08/20) estarei daqui a pouco às 17h numa live no canal da Débora Diniz no Instagram. O nome é Banquinha do Avesso, e a ideia é conversar sobre momentos de virada e/ou fracassos na vida acadêmica. Sei que tá em cima da hora, mas acho que ficará gravado no IGTV dela.

Meu imenso abraço e muito obrigada a todos que escreveram com gentilezas sobre a minha aula do curso da Rosana Pinheiro-Machado. Vocês são uns amores!! ♥

Sobre a citação inicial: Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra, pág. 33 da edição Abril Cultural (1978, Trad. Viscondes de Castilho e Azevedo).

Sobre a imagem que abre o post: Montagem mal encaixada de uma pintura enorme que fiz durante a quarentena. Foi a maior aquarela que já pintei, com 104 x 48 cm. Tive que escanear em 8 partes. Ia encaixar todas as imagens direitinho no Photoshop, mas depois acabei gostando dessa montagem esquisita. Achei uma boa metáfora para esse momento de tentar nos equilibrar e seguir, mesmo sabendo que vamos deixar muitas coisas pelo caminho.

Sobre a pintura em si: Desenhei as esferas a lápis, utilizando vários objetos redondos da casa. Depois, pintei sobre a superfície do papel molhada de modo que as cores fossem se misturando ao sabor da água e das variações dos pigmentos. O papel e a liberdade foram presentes da minha sobrinha artista, Celina Kuschnir, com quem fiz uma oficina de criação maravilhosa, agora oferecida online (detalhes no IG do projeto S_O_L). 

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2020. “Imperfeições”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3QW. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Aos treze

Celina

Essa semana o meu desafio foi voltar no tempo. Não em busca de uma memória específica, um episódio ou um acontecimento. Não… Passei os dias tentando me lembrar de como eu vivia e sentia aos treze anos.

Ter formação em antropologia ajuda? Um pouco. Afinal, a gente vem se debatendo há décadas com a busca por conhecer o mundo pelo ponto de vista dos outros. E “eu, aos treze” era definitivamente uma outra…

O problema é que fazer isso só é fácil na teoria. “Basta não ser etnocêntrico”, diz o livro. Qualquer aluno de ciências sociais acha que tira de letra. Porém, é só pedir um exercício prático que a compreensão vai pelo ralo. Vejam um frase de um estudante do primeiro período (de muitos anos atrás) sobre o universo que tentava analisar:

“Eram pessoas muito diferentes de mim. Eu me senti um estranho, mas depois até que fui me acostumando e achando que eles eram legais.”

Pois é… Não acrescentou nada!

Mas hoje vejo essa frase de forma menos crítica. No fundo, ele escreveu o que todo mundo sente. Compreender o outro não é passar a achá-lo menos estranho e menos chato?

Eu até costumava mostrar essa frase como exemplo do que não escrever num diário de campo. Em seguida, mostrava um trecho de “boa prática” na escrita acadêmica, de uma aluna estudando jogadores de games:

“Esse grupo tem toda uma linguagem particular que aos poucos fui aprendendo. Por exemplo: ‘– Como foi na prova da Petrobras?’ ‘– Ah, foi só para ganhar XP.’ (XP é uma pontuação do jogo. Ele quis dizer que foi mal, mas serviu para ganhar XP=experiência.)”

Pronto. Pelo menos aprendemos alguma coisa.

Voltando à minha volta no tempo. De repente, consegui me lembrar. Quando eu tinha treze anos estava com a paixão à deriva! Sentia a existência dessa coisa maravilhosa, doida, dolorida… Tinha uma força pulsando no peito (e em outras partes do corpo!) e não sabia o que fazer com ela. Ansiava por viver aquilo que (achava que) já sabia na teoria… Escrevia cartas para namorados imaginários… Ia pulando de sonho, de canção, de ídolo, de amor imaginado, numa espécie de eterno viver-em-tese…

E por que essa viagem? Porque meu filho tem treze anos e meio. E eu o amo profundamente… e anseio por me sentir mais conectada com as descobertas e angústias que ele está vivendo. (Sem deixar de ser a mãe.)

Agora já me sinto um pouquinho menos ignorante. E também posso dizer: é difícil, mas vai passar. Daqui a pouco chegam os quatorze, os quinze e finalmente os mágicos dezesseis!

Sobre o desenho: Hoje passei duas horas no trânsito (não, não é modo de dizer). Mas no meio do caminho avistei minha sobrinha Celina Kuschnir, assim mesmo, de calça (ou meia-calça) azul e capa-de-chuva vermelha (ou seria um vestido?). Uma coisa linda de se ver, toda Amelie Poulain, no meio da Rua São Clemente! Gritei por ela, que se virou e me deu um oi-tchau e um sorriso de longe. Assim que cheguei em casa, tentei desenhar a cena, que vai aí em cima em canetinha Uninpin 0,1 e aquarela. Sei que está bem tosca, mas acho que é uma boa ilustração de alguém vivendo a idade-na-idade-que-tem. E um bom lembrete para mim: viver no presente, pois até no meio de um trânsito horrível pode surgir um desenho cor de rosa!

Sobre o título desse post: “Aos treze” é também o título de um filme (2003, direção Catherine Hardwicke) que vi por sugestão de minhas alunas (na época, da PUC-Rio), que fizeram um ótimo trabalho sobre o tema da adolescência no cinema.