Karina Kuschnir

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Quinze maneiras de identificar relações abusivas e o que podemos fazer

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“Eu estava entrando em um meio em que a intimidade é frequentemente profissional, e por isso os limites se confundem. (…) Apesar disso, o incidente com Harvey me deixou desconfortável; eu conseguia explicar e justificar aquilo para mim, e guardá-lo como um momento constrangedor. (…) eu me senti confusa com o desconforto que eu experimentei antes.” (Lupita Nyong’o)

O depoimento de Lupita Nyong’o foi um dos que mais me impactou entre os que li sobre H. Weinstein, homem que perseguia, abusava e estuprava mulheres ao seu redor.

Ao narrar em nuances sua trajetória como objeto de atração e manipulação por parte de um predador, Lupita nos permite entrar em contato com as emoções mais profundas das vítimas de relações abusivas: a vontade de acertar, a credulidade, a desconfiança, a vergonha, a desestabilização do senso de si mesma, a fragilidade e a culpa.

Os abusadores têm como estratégia básica confundir. Ao contrário do ditado popular, eles primeiro assopram, depois batem; e assim sucessivamente. Quando você vê a ferida, eles estão a postos para colocar um curativo por cima. O curativo vem por meio de presentes, cargos, viagens; e de migalhas de sentimentos: “bom-humor”, “carinhos”, “amor” — tudo entre aspas, já que são pseudo-emoções.

Na minha visão leiga, abusador é alguém que não sabe amar, a começar por si mesmo. São pessoas que morrem de medo do que têm por dentro, que não se aceitam, que se odeiam e descontam esse ódio nos outros. Ao agredir a vítima, verbal ou fisicamente, eles projetam sua lama interna.

“Sempre que vocês brigam, de alguma forma muito estranha, que não é explicada, você está sempre errada? Você sempre acaba pedindo desculpas, mesmo quando no início você tinha certeza de que estava certa? (…) Aí você vai ficando presa ali, numa teia de manipulação sem fim… (…) Relacionamento abusivo não é só tapa na cara (…); você pode ser abusada psicologicamente também.” (Jout Jout Prazer)

Milhões de pessoas são abusadas todos os dias. Como as estatísticas mostram, a maioria dos algozes está dentro de casa. São familiares, pais, tios, primos, padrinhos, padrastos, parceiros, pessoas com quem deveríamos ter vínculos amorosos.

O problema é que, em muitos, muitos, desses casos, não temos como simplesmente terminar a relação. Crianças e jovens vítimas de familiares abusivos; orientandos vítimas de orientadores abusivos; mulheres vítimas de casamentos abusivos em situação de dependência; pessoas vítimas de trabalhos abusivos em condições aviltantes; alunos vítimas de sistemas (escolares, médicos e sociais) abusivos, sem subsistência fora dele; grupos religiosos, étnicos, imigrantes, de cor, de gênero… A lista é imensa.

As situações de violência extrema são fáceis de identificar, mas como saber quando a violência se dá no plano de sofrimento psicológico? Inspirada nos depoimentos citados, escrevi quinze critérios para ajudar a identificar relações abusivas violentas, ainda que sem agressão física. Em todas as frases, acrescentem “constantemente”, “insistentemente”, “repetidamente”, pois a maioria dessas coisas se torna abusiva por ser vivida com uma frequência doentia.

1) Quando seus sentimentos mais profundos são negados: isso é abusivo.
2) Quando você é acusada de estar sempre errada: isso é abusivo.
3) Quando seu “não” é desconsiderado e classificado de mimado e egoísta: isso é abusivo.
4) Quando você é levado a se sentir culpada de tudo: isso é abusivo.
5) Quando você nunca sabe se o abusador vai explodir ou sorrir: isso é abusivo.
6) Quando você se sente manipulada e confundida por alguém: isso é abusivo.
7) Quando alguém, numa posição de poder, te faz se sentir inferior por ser quem você é, não importa o quanto você tenta agradar ou corresponder às expectativas: isso é abusivo.
8) Quando alguém te interpela agressivamente querendo saber o que você está pensando, fazendo (ou não) constantes insinuações negativas: isso é abusivo.
9) Quando alguém menospreza ou ridiculariza coisas e pessoas que você ama: isso é abusivo.
10) Quando alguém que deveria te amar te xinga ou berra com você por motivo fútil: isso é abusivo.
11) Quando alguém te chantageia, dizendo que deveria ser amado por você, porque não te bate: isso é abusivo.
12) Quando alguém exige ser amado “porque te dá tudo”: isso é abusivo.
13) Quando alguém é abusador e não reconhece, não se trata (psicologicamente, medicalmente, espiritualmente etc.): isso perpetua relações abusivas com todos à sua volta.
14) Quando você sente que não pode chorar ou se mostrar frágil na frente de uma pessoa que deveria ser próxima afetivamente: isso é um sintoma de um relacionamento abusivo.
15) Quando todas as situações acima acontecem em ambientes sem testemunhas: isso é um sintoma de um relacionamento abusivo.

O que fazer diante dessas situações? Como lidar com a impotência de não poder sair; ou como ajudar uma vítima a lidar (ou sair) de um relacionamento abusivo?

Em seu depoimento, Lupita afirma:

…espero que possamos formar uma comunidade em que mulheres possam falar sobre abuso e não sofrer outro abuso por não serem acreditadas e, pelo contrário, sejam ridicularizadas. É por isso que não nos manifestamos — por medo de sofrer duas vezes, e por medo de ser tachadas e caracterizadas por nosso momento de desempoderamento.  (…) ao falarmos alto, falarmos livres, falarmos juntas, nós recobramos o poder. (…) Eu solto a minha voz para contribuir com o fim da conspiração do silêncio. (Lupita Nyong’o)

Acho que podemos:

Falar alto — Lupita toca num ponto muito importante: precisamos oferecer redes de apoio às vítimas para que elas possam falar e alto! Isso vale para mulheres e para todas as outras pessoas em situação de vulnerabilidade.

Acolher — Precisamos dar acolhimento às vítimas para que elas não sofram duplamente, pelo abuso e pela culpa. Apoiar, abraçar, confortar são formas de mostrar que a pessoa não está sozinha, tentando restaurar o seu abalado senso de pertencimento.

Escutar e reconhecer — Precisamos melhorar nossa escuta, sendo mais pacientes, disponíveis e abertos para ouvir as pessoas — porque a vítima se encontra quase sempre num estado de confusão sobre si mesma. Esse tipo de violência é uma forma de tortura cujo objetivo é desestabilizar, fomentando a insegurança da auto-percepção da vítima como vítima. Por isso, é tão importante reconhecer a situação abusiva.

Fortalecer — Ninguém pode se furtar das dificuldades e frustrações, mas podemos nos fortalecer uns aos outros emocionalmente. Essa força afetiva pode ajudar uma pessoa em uma relação abusiva a identificar a situação em que se encontra, seja para sair dela (quando possível), seja para aprender a lidar, reduzindo os seus danos (quando em situações inevitáveis). Esse fortalecimento também pode (e deve, na minha opinião) ser complementado com um apoio terapêutico profissional.

Sei que há vários aspectos das relações abusivas que não foram tratados nesse texto. É um tema complexo demais para um post. Tentei contribuir com algumas perspectivas possíveis, mas nem de longe pretendi dar conta do debate. Foi uma forma de compartilhar minha emoção com o texto da Lupita Nyong’o, quem sabe ajudando a fortalecer pessoas que estão passando por situações difíceis.

Agradeço a todos leram e faço um pedido: compartilhem! Há muitas vítimas silenciadas ainda.

Queria terminar agradecendo o carinho de vocês.  Não dou conta de responder os comentários, mas reafirmo meu muito obrigada! Sem esse apoio, através de tantas mensagens, likes e e-mails, eu não teria coragem de escrever sobre tudo que escrevo aqui. ♥  Mesmo assim, alguns vão notar que não consegui escrever na primeira pessoa, como sempre procuro fazer no blog. Ainda não tenho a força da Lupita. Um dia eu chego lá.

PS: Estou me recuperando bem da cirurgia (de vesícula). Obrigada pelos desejos de melhoras!

Fontes das citações: O depoimento citado de Lupita Nyong’o  foi uma tradução livre do Rodrigo Torres para o Adoro Cinema. Li pela primeira vez no original, publicado no New York Times em 19/10/2017.

O trecho da Jout Jout Prazer é uma citação extraída do vídeo “Não tira o batom vermelho” sobre relacionamentos abusivos, visto por quase 3 milhões de pessoas desde que foi publicado em 26/2/2015.

Sobre o desenho: Aquarela feita por mim em 2008, na época em que fazia aulas de modelo-vivo na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Nesse dia, nosso professor, Manoel Fernandes, pediu que explorássemos o significado do espaço do papel. Minha escolha pelo canto inferior direito acabou resultando nessa sensação de solidão. No original, o restante do papel em branco é bem maior, reforçando ainda mais a ideia de isolamento. Tive que cortar um pouco (e adicionar um ligeiro tom de rosa à folha) para que o post não parecesse vazio para quem lê no celular. Para a execução, utilizei uma pena de bambu (se não me engano), nanquim e aquarela.

Você acabou de ler “Quinze maneiras de identificar relações abusivas e o que podemos fazer“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2017. “Quinze maneiras de identificar relações abusivas e o que podemos fazer”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: http://wp.me/p42zgF-3lF. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Os bastidores do blog

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“Não compare os bastidores da sua vida com a fachada da vida dos outros.”

Taí uma frase que preciso colar na parede na frente do meu computador! Não é que a gente faz isso o tempo todo? Achei uma boa síntese do mundo atual o artigo do Seth Stephens-Davidowitz, no New York Times, sobre como as pessoas são diferentes nos posts no Facebook e nas perguntas que fazem ao Google. Na vitrine somos felizes, amorosos e alegres; no cantinho escondido da janela de buscas, somos doentes, confusos e melancólicos. É muito contraste, conclui o autor, citando o conselho dos Alcoólicos anônimos que destaquei acima (no original,  “Don’t compare your backstage to other people’s front stage”). Por coincidência, no mesmo dia, a artista Liz Steel escreveu sobre as dificuldades em montar um curso online começando com uma versão bem-humorada da máxima: “Don’t compare your insides to other people’s outsides” (algo como “não compare seu mundo interno com a aparência externa dos outros”).

Pensei em aproveitar o tema para responder uma dúvida que já ouvi de várias pessoas: como é o dia-a-dia de manter o blog?

1) Faz-de-conta  — “Várias” pessoas me escrevem…? Foram só *cinco* que me perguntaram sobre isso, duas por escrito e três pessoalmente, vai ver até por educação… Alguns autores (eu inclusive) inflam seus textos com esse tipo de palavra genérica sobre os seus leitores — muitos, vários, diversos, um monte! — deixando no ar uma aura de sucesso. Esse tipo de recurso é mais velho que a vovozinha, né? Não julgo, porque às vezes também caio nessa besteira. É uma forma de não desanimar por falta de torcida.

2) Apenas 3% ! —  Dos 149 posts já publicados aqui, apenas cinco (3%) têm uma visitação alta para os meus padrões (de 10 a 35 mil vistas), respondendo por quase 80% das estatísticas. Portanto, 97% do tempo escrevo consciente de não ter tantos leitores. São aproximadamente 200 a 1000 visualizações por post, atualmente. Segundo o que consigo ver com o meu vínculo gratuito no WordPress, as médias mensais foram subindo com os anos, de 1.500, 3000, 5000,  até as cerca de 6 mil vistas por mês atuais, exceto nos meses de posts mais lidos, com médias de 10 a 30 mil. Os números de visitantes são cerca de 30% menores que esses.

3) Zero centavos — Nunca ganhei um tostão com o blog e estou feliz assim. Não aconselho apostar a vida em “viver de blog”. Conheço autores super bem sucedidos, que aparecem em televisão, tem anunciantes e tudo, e mal conseguem pagar a conta de luz com os rendimentos gerados. O segredo para fazer dinheiro na internet é por outros caminhos.

4) Ganhos — Desenhar, escrever e publicar toda semana é um trabalho voluntário que me dá um retorno emocional e intelectual impossível de medir em números. Sei por outras experiências que trabalhos voluntários nos apaixonam e são o melhor investimento da vida. Abrir espaço na agenda da “vida real” para fazer esse tipo de coisa é difícil , cansativo, exigente, chato… mas compensa, demais.

5) Desafio — Desde pequena, eu gostava de escrever em diários, mas percebia que 99% dos meus textos eram reclamações e tristezas. É tão mais fácil registrar o que dá errado! A escrita alivia. (Aliás, uma dica paralela: quando estiver com raiva de algo ou de alguém, escreva uma longa mensagem e mande apenas para o seu próprio e-mail.) Quando meus filhos nasceram, comecei a fazer diários para eles, tentando escrever de uma forma positiva, como se dissesse: “crianças, bem vindas ao mundo, valeu a pena ter nascido!”  Esse foi e é um dos desafios que me faz manter o blog até hoje: falar da vida (e do mundo acadêmico) de uma forma positiva e bem-humorada, sem deixar de ser crítica. Haja criatividade!

6) Prática — Na real, o dia-a-dia de produzir o blog desde novembro de 2013 tem sido caótico. Não faço reunião de pauta comigo mesma, não escrevo com antecedência, não preparo tudo bonitinho no Word antes, não desenho com calma, não faço nada que mandam os manuais dos blogueiros profissionais. Sigo a intuição e reviso bastante depois. Já tentei encontrar um horário, um dia certo, um sistema, mas a vida atropela sempre. Essa semana, por exemplo, estou dando quase 20 horas de aulas presenciais (faltam 3 hoje à noite ainda). Continuo porque o processo me faz bem. Sabem a sensação de terminar uma atividade física boa? Ou a de terminar um artigo/capítulo da tese? É por aí.

Às cinco queridas leitoras que me estimularam a escrever esse post: espero ter ajudado nos planos bloguísticos de vocês! Faltaram alguns temas, mas já estou atrasada para um compromisso! Melhor feito do que perfeito, como diria a vovó Trude. Escrevam, desenhem, fotografem, publiquem, sim! O mundo agradece.

6 Coisas impossivelmente-legais-lindas-e-interessantes da semana (inclui as fontes citadas acima):

* A citação que abre o post está no artigo “Don’t Let Facebook Make You Miserable” do Seth Stephens-Davidowitz, no New York Times.

* Cheguei ao link acima através da newsletter Meio, enviada para assinantes por e-mail todos os dias às 7 da manhã (grátis).

* O texto da artista Liz Steel mencionado está aqui, aliás num blog ótimo para todos que se interessam por aquarela e diários gráficos.

* Li um artigo curtinho, com imagens lindas e interessantes, sobre a história da fotografia, na Revista da Fapesp. Vou atrás de todas as sugestões de leitura no final.

* Do antropólogo B. Malinowski, descobri na seção “reprints” da revista HAU, o simpático “Anthropology is the science of the sense of humour” (acesso gratuito).

♥ Para quem está com saudades da Alice: ela está fofa e manda beijos!

Sobre o desenho: Imagem mostrando os “bastidores” aqui de casa, feita com caneta-pincel Tombow (não sei o número porque descascou) num caderno de rascunho que deixo na sala para desenhar quando a TV está ligada.

Você acabou de ler “Os bastidores do blog“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2017. “Os bastidores do blog”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url:  http://wp.me/p42zgF-215. Acesso em [dd/mm/aaaa].