Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas

Alergia aos imperativos

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Não sei bem como começou a minha alergia aos imperativos. Talvez com a mania da minha avó de ir a videntes, que ela chamava carinhosamente de “pitonisas”. Ciganas, mães de santo, leitoras de cartas e de borras de café; mas também padres, rabinos, monges, budistas e médiuns. Todos tomavam café com ela.

Era uma espécie de novela. Você sentava e ouvia a previsão dos negócios, das doenças, dos casamentos, da chegada do sucesso ou das viagens. Tinha suspense, intervalos e próximos capítulos. Às vezes ela brigava com um deles, decepcionava-se. Ou ao contrário: elegia um guru, virava macrobiótica ou crente do dia para a noite. Ninguém se metia. “Coisas da vovó”. Duravam pouco e ela logo voltava para seu mix místico.

Eram gentes de todos os tipos, que nos levavam a visitar bairros longínquos, onde entrávamos nas suas casas ou templos, com respeito, fossem pretos, brancos, pobres, ricos, velhos, jovens, simples ou complexos. Alguns viravam conselheiros, confidentes, e até os melhores amigos pela vida toda.

Eu adorava minha avó, e me apaixonei pelo seu sonho de prever o futuro. Acompanhava suas excursões e, mais crescida, comecei a arriscar algumas visitas sozinha. Lembro de uma cigana, no alto da ladeira dos Tabajaras — olha o João do Rio aí — numa casa surpreendentemente branca e cheia de tapetes. Ela foi firme: eu ia “casar com um estrangeiro, que gostava de papéis e tinha olhos azuis.” Outra vez, fui numa senhorinha muito distinta que lia borras de café. E lá vinha o futuro: era certo o meu casamento com um homem alto, “estrangeiro e de muito estudo.” Variava a ordem, mas a previsão era consistente! Fazer o que? Cliente meio loira, com sobrenome estranho e cara de boa aluna (já de óculos desde cedo)…

Só que não. Eu não queria casar: queria ser grande (para bater nos meus irmãos) e fugir de casa para escrever e desenhar (lembram?).

Admito: ganhar na loteria não era uma má ideia. Será que elas não poderiam ver os números para mim? Não era para isso que serviam as numerólogas, tão na moda nos anos 1980? Não. Elas serviam para dizer que você deveria mudar de nome. Era só eu me chamar “Karynnah” e tudo ia dar certo.

Até que caiu a ficha. Nada mais de videntes e bilhetes da sorte. Confesso que pensei em casar com o meu primeiro namorado, bem moreninho, de olhos pretos e péssimo aluno. (Se eu não confessar, minha irmã vai me delatar nos comentários…) Felizmente acordei a tempo e acabei casando com um ator de teatro no Circo Voador.

Foi assim que peguei alergia aos imperativos. Não, não por culpa do ator; e nem do pai, nem da mãe! Meu pai não estava nem aí (literalmente). E minha mãe foi revolucionária à sua moda nos anos 1970. Acreditava no construtivismo e seu lema estava mais para “se vire” do que “me obedeça”.

A alergia veio mesmo é das previsões de pitonisas e dos manuais de auto ajuda ruins. Eles te dizem: “leia, cuide, seja, trabalhe, estude, corra, compre, medite, tome, faça”. Fico logo empolada: — “Ah, vão se catar. Vão mandar na vovozinha, que eu odeio que mandem em mim.” E também não mandem na minha falecida avó, pois no fundo ela ouvia a todos, mas só fazia o que queria.

(Ok… Não fica bem uma antropóloga escrever isso… Afinal, nas ciências sociais passamos metade das nossas vidas falando para os alunos sobre o poder da “coerção social” ou das “leis de ferro da oligarquia” — que eram de bronze, no original, mas o tradutor deve ter achado o material fraquinho, e pôs logo o ferro para assustar. Mas, convenhamos, se estamos ensinando sobre essas forças “invisíveis” há mais de um século, elas não são tão invisíveis assim, né? Até minha filha de oito anos sabe que o Obama lê o Facebook dela.)

Quando se liga o “radar anti-imperativos”, é como tomar uma vacina. Nenhum salvador de plantão te pega; nem vidente que quer te casar com turista, nem jogos de azar, nem anúncio da coca-cola, nem filósofo francês que descobriu o Graal, nem autor da moda que anuncia a solução final da antropologia.

Não é desacreditar de tudo. É tomar distância de quem profetiza que agora “o mundo tem que ser assim”.

Prefiro desenhar, contar histórias… e, principalmente, não mandar na vida de ninguém. 

Sobre os desenhos: Pedacinhos de um caderno de campo feito em Lisboa em 2013, para homenagear meu namorado, o homem mais gentil, doce, alegre, criativo e lindo da face da terra; e também muito, muito alérgico, como eu, a todos os imperativos e vontades de comandar as pessoas. Utilizei canetinhas Unipin 0.2, aquarela e lápis de cor, num caderninho de papel comum, mas com capa linda, e que agora só é vendido na Inglaterra… Aliás, se alguém tiver um endereço UK para me ajudar a comprar outros, agradeceria muito! *__*  (Para todos com mais de 18 anos: essa carinha à esquerda foi sugerida pelo Antônio. É um emoticon que significa “olhinhos brilhando”. Eu tinha digitado outro que, segundo ele, era impublicável… Vai saber!)

Agradecimentos: Na semana passada tive os meus cinco-mil-cliques-de-fama… Agradeço a gentileza dos que leram, likearam, compartilharam, comentaram. Prometo que não vou sucumbir ao sucesso, nem tentar postar coisas interessantes por várias semanas, de modo que possamos voltar aqui aos trinta e dois leitores e às bobagens de sempre. Lições demais também atrapalham!

14 pensamentos sobre “Alergia aos imperativos

  1. Mais uma leitora! Adorei conhecer seu blog e ler suas postagens!

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  2. Pingback: O sorriso do professor | Karina Kuschnir

  3. não consegui parar até ler todos os textos e ver todos os desenhos lindos do blog. continue escrevendo. 34 agora

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  4. Que delícia de texto e de desenhos! Estou adorando acompanhar o seu blog tão criativo e bem humorado! Parabéns!

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  5. Quem é Pedra, quem é Água (e do Castelo ainda rs!) ? Bjs carinhosos 🙂

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    • hahaha — minha água preferida em Lisboa é a Castelo. A Pedras é muito salgada, mas tem quem ame!! obrigada pela visita!

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  6. Trinta e três, Karina! De quando em vez, aumenta a adesão….rs.
    Fiquei pensando: de certa forma, lições também são imperativas, mesmo que compartilhadas por alguém sensível e bem humorada como você! E bombaram, não é? Será que somos um bando de gente à deriva, loucos por um caminho?

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    • Obrigada Maria Cecília! sim, quando terminei o post, fiquei me sentindo meio contraditória de falar mal dos imperativos e ter acabado de postar “dez lições”. Mas depois avaliei que nem tanto… As lições foram todas histórias que passei e que me ensinaram alguma coisa — quem quiser que decida se gosta ou não… Fui até rever o texto para checar se tinha algum imperativo e não tinha! ufa. Sim, somos seduzidos pelas soluções mágicas… mas escolhi lutar contra elas, porque percebi que encontrar, errar e acertar traz mais aprendizado no caminho. Obrigada pela visita!

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  7. Adorei o texto, Karina! Pitonisas foi ótimo! Bjs!

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    • que bom, Cla! Outro dia recebi a mensagem de uma ex-aluna que foi ao grupo do Catete que você está coordenando e amou! Fiquei muito feliz e saudosa… Vou me organizar para ir lá participar.

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  8. Só posso dizer que uma parte bem legal da semana é ler suas histórias e ver seus desenhos 🙂

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  9. “Todos tomavam café com ela.” Adorei isso. Parabéns, Karina pelo texto e o desenho!

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    • Também me surpreendeu essa frase, querida. Simplesmente saiu, talvez porque a minha principal lembrança é dela sentada com essas pessoas na mesinha de café-da-manhã, lanches e cafés da tarde. Um lugar aliás muito especial na casa, pois era na beira de uma janela cheia de plantas e passarinhos… Obrigada pela visita!

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