Karina Kuschnir

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Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 1)

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abracocoletivog

A sensação de que a nossa vida depende do sucesso profissional é massacrante. Durante a escrita de um trabalho acadêmico, isso se transforma num pesadelo: além das perdas objetivas, achamos que o fracasso atingirá todas as nossas relações afetivas.

Não sofri tanto na escrita da monografia de graduação, mas assim que tive que fazer o meu primeiro trabalho de curso no mestrado, senti o baque. Inexperiência, cansaço e prazos apertados produziam uma insegurança enorme.

Eu tinha quase certeza: “não vou conseguir terminar isso, serei um fracasso, todo mundo vai me abandonar”.

Foi nessa época que comecei a perguntar para as pessoas que eu amava se elas iam deixar de gostar de mim se eu abandonasse o mestrado (e mais tarde, num desespero bem pior, o doutorado). Cada vez que elas diziam que não, que continuariam me amando, eu ganhava um folegozinho para continuar. Como se eu precisasse ter a segurança de que continuaria existindo como pessoa, mesmo sem dar conta daquele trabalho.

Quanta coisa errada num sentimento só!

Nós não somos o nosso trabalho. Eu não sou o meu currículo nem os meus diplomas.

Foi só depois de ter meu primeiro filho e de me engajar num grupo de apoio de mulheres que entendi. Quando confundimos nossa percepção de nós mesmas com os resultados do nosso trabalho, nossa saúde emocional vai para o espaço.

O pior é que não foram os 12 anos de graduação, mestrado e doutorado que me fizeram enxergar isso. Ao contrário, muitas vezes, na academia, apesar de lermos sobre a exploração dos trabalhadores, não percebemos o quanto estamos sendo explorados. Pesquisamos sobre relações de poder e não conseguimos enxergar quantas estão nos sufocando.

Estou sendo ingênua?

Acho que não. Explico por que. Outro dia fui participar de um evento sobre saúde mental na vida acadêmica. Os relatos de sofrimentos que ouvi foram muitos, muitos mesmo. Escutei também algumas histórias emocionantes de superação, de ajuda mútua e de sobrevivência. Ao final, no entanto, ficou claro para mim que uma das maiores fontes de angústia é causada por essa identificação de alunos e professores com a ideia de “ser” significar “conquistar”.

Muitos docentes já estão tão acostumados com esse estilo de vida que pegam num microfone, diante de dezenas de alunos de pós-graduação que acabaram de relatar suas experiências de sofrimento, para contar que ficaram quinze dias sem dormir, orientaram dez projetos, participaram de 3 bancas e ainda terminaram um projeto de pesquisa no prazo. “É assim mesmo!”

É assim mesmo? Talvez seja, para um docente experiente, que tem seu salário garantido no final do mês, que sabe que terá seus quinze dias de descanso depois. Mas qual é o recado que a plateia recebe? Vocês estão de moleza, vocês não se sacrificam o suficiente.

Pode parecer mentira mas não é: numa instituição de pós-graduação altamente qualificada de ensino do Rio de Janeiro, a principal queixa dos alunos foi o deboche, o descaso diante das suas dificuldades.

Claro que isso não parte de todos os docentes, nem atinge todos os alunos. Mas são muitos, de ambos os lados. Os discentes fragilizados pela insegurança inerente ao aprendizado, os professores sobrecarregados pela naturalização dos deveres da sua própria identidade, ajudando (às vezes de modo inconsciente) a reproduzir o processo na vida institucional.

Ter alguém que nos ouça é o primeiro passo para sair de um problema de saúde mental, por mais grave que ele seja. A pessoa em sofrimento precisa sentir abertura de seu interlocutor para que possa desabafar. Não é necessário ter uma solução, às vezes basta ser escutado.

Voltando ao assunto do título… para vocês verem que a coisa não passa, nem com anos de profissão. Outro dia, eu e uma amiga (com uma carreira linda) trocamos algumas mensagens, ambas nos sentindo mais ou menos na escala de sucesso acadêmico. De repente, me dei conta, me belisquei, acordei. Mais ou menos? Não! Somos maravilhosas!

Bora viver, experimentar, encontrar espaços de apoio e amizades que nos mostrem que merecemos nos amar e termos momentos de alegria, em todas as etapas da vida, seja qual for o trabalho que estejamos fazendo.

Para quem estiver em sofrimento, não deixe de procurar ajuda. Além de seus amigos e familiares, existem alguns canais de auxílio públicos:

Instituto Pinel – atendimento 24h: (21) 2542-3049 (Liguei para verificar e a emergência para problemas psiquiátricos continua aberta: Av. Venceslau Braz, 65 – Botafogo, Rio de Janeiro – RJ.)
Você não está sozinho: ligue 141
CVV (Centro de Valorização da Vida) Rio de Janeiro: (21) 2613-4141
Leiam o ótimo Falando abertamente sobre suicídio.


Não por acaso, alguns dos posts mais lidos do blog são sobre esse assunto:
Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? Parte 1
Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? Parte 2
Sete coisas invisíveis na vida de uma professora
Defesa de doutorado: dez dicas para sobreviver (e aproveitar)
Carta a um jovem doutorando
Dez lições da vida acadêmica 
Não passei
Dez truques da escrita num livro só
e outros com a tag  mundo acadêmico

Sobre o desenho: aproveitei os abraços do meu cartão de agradecimento de aniversário de 2016. Linhas feitas com canetas de nanquim permanente descartável, depois coloridas com aquarela, num caderninho Fabriano (Watercolour 200g/m², 14,8x21cm), que ganhei num evento e ainda não terminei. Para fazer os bonequinhos se abraçando, me inspirei em fotos pessoais.

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2017. “Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 1)”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3z5. Acesso em [dd/mm/aaaa].

14 pensamentos sobre “Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 1)

  1. Eu abandonei o doutorado. Qualificação já defendida. Podia criar uma ficcão, o tema e método permitiam isso. Mas não consegui. Na verdade foi a grande crise da minha vida, onde problemas afetivos e de dependência quimica se misturaram. Hoje estou bem. Vida mediana com felicidade possível. Mas foi duro.

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  2. Texto que embasa uma discussão muito pertinente, a respeito da saúde mental de acadêmicos. Principalmente, sobre percebermos que somos além do que apresentamos no ambiente universitário, seja na condição de professor(a) ou de pós-graduando.
    Leio este post pela primeira vez, num dia que está sendo bem complicado para mim. Hoje foi o primeiro dia de um concurso público para docente de uma universidade federal (UF) e desisti de fazer o concurso, por opção. Isso, porque não estudei quase nada, por causa de atividades laborais (quem é docente, sempre leva trabalho para casa), outros compromissos e o tempo que estaria apta a estudar (cedo da manhã ou tarde da noite) são horários incovenientes para minha mãe com quem divido o quarto.
    Pertenço a uma família pobre, e por razões financeiras, moro com meus pais. Meu pai, não se incomoda tanto apesar de ser acamado. Minha mãe se incomoda a noite por eu ficar com a luminária acesa e ela não dorme direito, quer que eu apague a luz e assim não tenho como escrever nada. Se me levanto muito cedo, levo o nome de louca. A luz da sala clareia o quarto porque as paredes das divisórias são abertas em cima. Já me estressei muito, ao pedir ajuda para minha orientadora do doutorado para o tal concurso. Minha mãe alucinando, em uma das discussões disse que, para minha orientadora faço tudo de boa vontade, mas pra ela, não. E eu respondi que pelo menos do jeito que fizer, ela fica satisfeita (de fato, pelo menos em 95% das vezes. Já pra minha mãe, quase nada do que faço fica bom (limpeza da casa, comida e outras coisinhas).
    Sendo que, na verdade, eu estava sendo ajudada. Fiquei tão chateada com a falta de estímulo, sem contar que quando estou em casa nos fins de semana tenho de virar cozinheira… Que tempo me sobra para estudar, trabalhar (sim, muitas vezes!) E me divertir? (sim, porque já basta os anos sem folga do mestrado, doutorado. Aí sim, sou capaz de enlouquecer mesmo).
    Enfim…. Tomei a decisão de não fazer a prova mas desde a semana passada me sinto muito mal, chateada com ela ainda que eu tente não ficar assim, afinal, é minha mãe. Mas só Deus sabe quando terei outra chance, o que vou gastar de tempo (de novo), dinheiro (de novo, dessa vez lá se foram uns R$400,00 entre inscrição, autenticações pois me inscrevi em cima da hora, encadernação do currículo, uber porque no edital não dizia até que horas o departamento iria receber os docs).
    Tentando superar e sei que vai passar, mas ainda tô digerindo. Ficaria com mais raiva ainda se eu fosse fazer a prova e não conseguisse redigir uma linha do ponto sorteado. E nem queria passar por essa vergonha para mim. Não quis arriscar.

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  3. Estou há algumas horas lendo vários posts no seu blog sobre essa superação na escrita de teses (estou aqui empacata pra entregar minha qualificação de mestrado em 18 dias) e me conforta muito esse texto. Parece que eu tenho que repetir todos os dias o lema de que essa dissertação não me define, que eu não sou o meu trabalho. Tive que trancar o meu mestrado por 11 meses por problemas psicológicos, mas eu consegui vencer uma parte dessa luta e cá eu estou de volta pra entregar esse início do fim do mestrado. Obrigada pelas suas palavras, me confortam muito… e ainda tenho muito o que ler por aqui! Pena que não te encontrei quando estava no meu maior desespero, mas nunca é tarde pra sentir um acalento!

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  8. O seu texto me contempla! Foi exatamente o que senti quando entrei no mestrado ano passado. Me perguntava se ainda me amariam se eu não aguentasse a barra diariamente, era um questionamento que me perseguia. E foi quando comecei a perceber que, como você diz lindamente, somos mais que nossos artigos publicados ou quantas horas trabalhamos diariamente. Temos nosso valor além disso, e é uma libertação poder enxergar esse outro lado da praia, antes encoberto por uma neblina de insegurança e desespero.

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    • muito obrigada pelo comentário tão gentil, Natalia. linda a imagem que você criou no seu texto… bjs, boa sorte em tudo♥

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  9. Eu passei por um processo de sofrimento muito grande na pós [em pleno século XXI foi acusada, por exemplo, de não ser científica o bastante e de escrever literatura]. Tudo melhorou quando um grupo de professores interferiu e me acolheu. Foi aí que entendi que a tese era minha e os rumos da minha vida acadêmica eram meus. Mudei de orientadora e ela me mostrou que eu era capaz sim. Consegui escrever uma tese como eu queria e ainda elogiada pela banca. Mas infelizmente ficaram marcas que interferem nos meus estudos para concursos ou na minha confiança em correr atrás de emprego. Eis outro processo de desconstrução difícil e dolorido. Precisamos falar mais sobre isso nas universidades e seu blog tem sido um respiro para muitos de nós. Obrigada.

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  10. Já falei… vc escreveu pra mim… 😜

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  11. Muito obrigado por esse texto, Karina. Ele toca em dimensões muito delicadas, as quais nem consigo nomear aqui… Lembro de você como uma professora que há muito me recebeu em suas aulas na graduação da UFRJ com grande generosidade e sensibilidade para as dificuldades que então eu enfrentava. Hoje estou no doutorado enfrentando alguns dos dilemas aqui apontados, que se desdobram em outras circunstâncias, e me alegra muito reencontrar nesse texto aquela professora e receber novamente o seu auxílio. Obrigado.

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  12. Ameiiii Karina!!

    Sou servidora de uma instituição que tudo envolve artigos qualis A!!! Orientar, dar aula, ler zilhões de dissertações e teses são menos importante…. ( E neste cenário que servidores públicos são tidos como “milionários, trabalham pouco e se aposentam cedo…”, professores, pesquisadores de instituições federais são colocados no mesmo saco….o que dizer???)

    Cheiro no coração e na Alma

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  13. Karina, este post é fantástico, então escrito por uma professora universitária é fantástico ao quadrado! Há tantos investigadores desesperados, não ouvidos, realmente desamparados que precisam de ler os seus posts sobre como sobreviver a teses e a (des)orientadores. Às vezes sinto que é um milagre algumas teses de doutoramento chegarem ao fim. Mas as sequelas emocionais que ficam são muito sérias, prejudicam a própria pessoa e a academia para sempre.

    Tenho a sensação a passagem por um doutoramento é também uma enorme aprendizagem sobre negociação com os orientadores e com a comunidade científica. Aprender a negociar e impor limites, até consigo próprio, é muito importante.

    Há muitos, muitos anos, no ano de 1995 desisti de uma licenciatura, porque senti no fundo, no fundo, que a minha família não ia deixar de me amar… Não queria de jeito nenhum continuar numa licenciatura que senti não fazer qualquer sentido para o meu perfil. Falando agora parece ter sido uma clara e sábia decisão, mas foi muito muito difícil e senti-me culpada por ter “perdido” um ano de vida durante muito tempo. O que aconteceu foi que ganhei anos e muita experiência de Vida. E hoje sei, mais de vinte anos depois que foi uma abençoada decisão.

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