Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Você não está sozinha

(…) como se fosse um dever / do artista criar / esperança, mas por quê? por quê? / a própria palavra /
falso, um dispositivo para refutar / a percepção – No cruzamento, // luzes ornamentais da estação. / Eu fui jovem aqui. Andando / de metrô com meu livrinho / como se me defendesse // desse mesmo mundo: / você não está sozinha, / dizia o poema, / no túnel escuro.
(Outubro, Louise Glück, trad. N. Santander)

Desde que o Juva morreu, senti muita necessidade de ficar sozinha. Não que eu fosse a pessoa mais sociável do mundo. Quem me conhece vai revirar os olhos: “você sempre foi assim”, zoa uma amiga. Não sei. Eu era a inocente “de metrô com meu livrinho”, como diz o poema. O luto sobrepôs uma camada sobre tudo. Sabem aquele glacê com tanto açúcar que parece cimento e ninguém aguenta comer? Alguns definem luto como “o vazio”; pra mim é “o cheio”: ocupa, preenche, inunda.

Em outubro, comecei a perceber uns espaços. Quis doar livros e tralhas, desmontar móveis, esvaziar gavetas, aceitar um convite. Fui a duas reuniões presenciais, participei de uma assembléia. Desfiz meu mini escritório de casa. Troquei duas mesas grandes por uma pequenina. Pendurei a tão sonhada rede no lugar. Uma parte eram os nossos planos; outra parte tive que inventar sozinha. Mas não digo só: Alice e Antônio me ajudaram. ♥ Taí como ficou.

Não sou boa de esquecer o passado. Amo coisas antigas. Coleciono, cultivo, colo e desenho nos cadernos. Imagina o amor. O amor que o Juva insistia que era dentro e eu que era fora. Como se ele já soubesse. Que um dia eu ia precisar aprender isso. Tá sendo na marra, mas tô aprendendo.

Uma metade cheia, uma metade vazia / Uma metade tristeza, uma metade alegria
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor (Chico Buarque)

Este não é um post triste. O poema chegou pelo zap, por um amigo. Falávamos da guerra. Todos colocaram carinhas tristes, mas para mim foi emoji de coração. Foquei na esperança, como o dever da artista, na pergunta de Louise Glück. Esperança por mim, por vocês, por todas as criaturas que um dia perderam seu chinelo real ou metafórico por aí. Aconteceu isso com a Havaiana que abre o post. Era nossa queridinha, mas partiu-se o par. Compramos outro correndo. Não estava no tamanho certo nem era alegre como ela.

Hoje esse é disputado por aqui. É a alegria de quem chega precisando de um chinelinho extra para caminhar.

Bons caminhos, pessoas queridas! Até semana que vem. ☼

Projeto “Como escrever um texto em 8 meses” — Desde o último post, escrevi 1557 palavras em três dias. Pois é, falhei. Quer dizer, mais ou menos. A meta era 300 palavras por dia e fiquei em 259,5. Viram como rende? Essas mil reuniões tiveram seu custo para a escrita pois cheguei tardíssimo em casa, exausta. Quando a agenda estiver assim, preciso escrever de manhã. Digo isso em voz alta para ver se meu cérebro noturno escuta! Voltando ao tema: foi muito produtivo começar a escrever. Há uma semana atrás eu estava perdida sobre o que queria fazer e como. A escrita tirou muitas coisas do caminho, colocou outra e — o principal — me fez ter ideias no metrô, no banho, na hora de dormir. Conversei com um amigo sobre o que escrevi. Saí do zero. Vislumbro pequenas tarefas. Decidi minha primeira leitura. Abri uma pasta no computador. Micro avanços. Semana que vem volto aqui para contar. (Se você não tem ideia do que estou falando, veja o post inicial da semana passada.)

Sobre a citação de Louise Glück: Recebi o poema Outubro, de Louise Glück, no original em inglês, em um grupo de amigos do zap. Achei a tradução do Nelson Santander do blog Singularidade Poética, do maravilhoso Paulo Henriques Brito. A íntegra do poema nas duas línguas aqui.

Sobre a citação do Chico Buarque: Quando comecei a escrever sobre o luto ser cheio, a canção do Chico falando sobre o copo vazio começou a tocar na minha mente. Fui ler e descobri que também falava de amor. ♥

Sobre a reorganização do mini-escritório no quarto: Quase tudo do novo espaço de trabalho é reaproveitado. A rede era da Alice, a mesinha de apoio era do Juva. A luminária, o tapetinho, a cadeira e duas prateleiras já eram minhas. A impressora tá escondida embaixo da mesa em um banquinho antigo também. As coisas que comprei foram uma mesa da Huma, via Magalu (r$316+frete) e uma prateleira extra para os gatos subirem nas outras duas (r$23,00, Palácio das ferramentas, metrô Uruguaiana). Gastei um pouco com acessórios de ferragens: gancho para rede, parafusos, mão francesa e feltro adesivo para a prateleira. Por sorte, gosto de ferramentas e já tinha furadeira e até uma aparafusadeira —esta comprada para montar e desmontar as mil estantes do Ju, daquelas de ferro com milhões de porcas e parafusos. Essa maquininha salva vidas e é super divertida de usar!.

Sobre os desenhos: Linhas com canetinhas Pigma Micron de várias espessuras no caderninho Laloran. Cores feitas com aquarelas, lápis de cor e um pouquinho de guache. Na página do chinelinho preto, tem uma etiqueta colada. São ilustrações de antes do luto, de janeiro de 2022. Levei vários dias debruçada sobre esses objetos tão cotidianos e bonitos. Fico emocionada só de olhar a havaianinha florida. Vocês também se sentem assim quando tem que jogar fora uma coisa amada? Ou são mais doidos do que eu e guardam no fundo do armário? Me contem, por favor!

Você acabou de ler “Você não está sozinha“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “Você não está sozinha“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-41h. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Abril/2018, Frágil

abril2018p

“Tem horas que é caco de vidro
Meses que é feito um grito
Tem horas que eu nem duvido
Tem dias que eu acredito.”
(Paulo Leminski)

Como criar nesse mar de sangue que vivemos no Brasil? Pensei na vida e lembrei do vidro, da beleza e da fragilidade desse material que vem da areia e vira tudo. Fiz o calendário e reencontrei o poema do Leminski. Caco, grito, dúvida, acredito.

Que dor esse país despedaçado, em que a vida da maioria da população não vale nada… Temos que seguir acreditando, protestando, achando um jeito de nos engajar, por todos que ainda estão vivos, pelas crianças que não pediram para nascer, pelos idosos que nos deram a vida, pela natureza, pelos animais, por nós. As lutas justas são muitas. Desdenhar dos que estão lutando ou ficar parado assistindo é que não dá.

Por falar nisso, hoje, dia 2/04/2018, tem o evento “Luzes para Marielle e Anderson”, às 19h. Onde você estiver, acenda uma vela ou luz, sinalizando às autoridades que não esqueceremos. Para confirmar ou se engajar em algum evento presencial, veja as opções na página Marielle Franco e compartilhe imagens e mensagens com a hashtag #LuzesParaMarielleEAnderson.

E para os pós-graduandos e professores que me escrevem, duvidando de suas escolhas: nosso trabalho tem valor sim. Fazer pesquisa, ensino e extensão com consciência, seriedade e ética para com seus interlocutores e a sociedade em geral é uma forma de contribuir para um mundo melhor, mesmo que os resultados sejam a longo prazo. Vamos continuar comparecendo, lendo, escrevendo, desenhando, pesquisando, publicando, produzindo, compartilhando — só não esqueçamos de respirar, nos abraçar e nos cuidar pelo caminho.

Força pra todos nós. Bom abril: tem feriado no Rio de Janeiro dias 21 e 23. ♥

Sobre o calendário:  Foi um desafio criar algo leve como vidro e ao mesmo tempo colorido o suficiente para escanear e imprimir. Espero que tenha dado certo. Para imprimir, abram o .pdf aqui. Desculpem o atraso!

Outros posts: Fiquei com vontade de indicar os posts “Um Matisse para Maria Eduarda” e “Mortos pelo Rio“, algumas das homenagens que escrevi às vítimas da violência na história do blog, tão atuais e antigas, sobre tudo isso.

Sobre o poema: O trecho citado é do poema “Passe a expressão“, do livro Distraídos venceremos, republicado na coletânea Toda Poesia — Paulo Leminski, pela Companhia das Letras, p.183.

Sobre o desenho: Desenhei as coisas de vidro com canetinha Pigma Micron 0,05; depois colori com lápis de cor Polychromos, da Faber-Castell e alguns Prismalo da Caran D’Ache; tudo em papel comum A4 90gr. Comecei com cores individuais, mas depois cheguei a essa mistura de verde, amarelo e rosa para dar uma certa unidade ao conjunto. No final, utilizei uma caneta pincel cinza quente (warm grey) Pitt Faber Castell para fazer as sombras embaixo dos objetos.

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Como citar: Kuschnir, Karina. 2018. “Abril/2018, Frágil”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3DN. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Poesia potente

montanha

“o nosso plano secreto,
secreto até para
nós mesmos,
era procurar
o melhor mirante”
(Carlito Azevedo)

Estou apaixonada por Monodrama, livro de Carlito Azevedo, que li e reli nas últimas semanas. É fresco, bonito, triste, suave, engraçado, apaixonado, sonoro, bom, bom de ler. É cheio de ecos e pequenas histórias, como a

“do místico que dizia
fumar para pôr
um pouco de névoa
entre ele e o mundo”

ou a do escritor que teria nascido com um irmão gêmeo, tão idêntico, ao ponto de, num acidente em que um deles morreu afogado, os pais nunca souberam qual dos dois tinha morrido: “se ele ou eu”.

É também um livro de sons, do “micromundo das vibrações sonoras” que arrepiam; um livro que brilha, “com os seus cem sóis”, que pára o tempo:

“por um segundo
fez todo o sentido do mundo
o nosso absurdo ir e vir”

E nos oferece o silêncio:

“uma pessoa do silêncio,
de sua equipe,
ou melhor,
o silêncio é meu
equipamento.
eu disse:
o silêncio
é meu equipamento”

É também um livro de amor,

“e o fim do amor
e com vontades contrárias e confusas
de deslocamento
e invisibilidade”

e de um poeta antropólogo:

“Parei um dia em uma dessas
praças e, deitado sobre a
grama, me pus a escutar a
desconexão absoluta de
todas as falas do mundo, de
todos os sonhos do mundo.”

Carlito escreve sobre as nossas “pequenas humilhações diárias”, aquelas que acordam conosco — nossos sinais, nossos vícios –, como na história do pobre homem que sussurra ter parado de tomar o café preto da garrafa térmica verde e, “neste mesmo instante se dá conta perfeitamente de que foi o café preto da garrafa térmica verde que o deixou”.

São poemas e prosas (não, não sei a diferença) em que as histórias parecem caminhar soltas, sem esforço, como os verbos de Rua dos Cataventos: ele estava, ele esteve, ele foi, ele poderia, ele será, ele colaborou, ele podia ter colaborado, ele vai colaborar, ele jogou, ele confirmou, ele fez, ele vai, “ele dançou conforme a música”.

E ainda nem chegamos na melhor parte, “Dois estrangeiros”. Todo o poema “A) Efeito Lupa” é uma delicadeza infinita; e me sinto má de escolher um pedaço para mostrar aqui, mas escolho, com o aviso de que o trecho não faz jus ao corpo inteiro:

“longe daqui
tenho amigos que me amam

e aos meus poemas
e pensam em mim todos os dias

Longe daqui
alguém leva desesperados numa chalana

alguém estuda as temperaturas
supercondutoras

alguém percebe que não
se tornou um gênio do piano

deve haver alguém que chora
quando sua amiga lhe lê

um poema de
seu poeta preferido”

Como todas as obras que amo, Monodrama também é daquelas que ri de si mesma. Tem drama e humor no mesmo parágrafo, com o poeta misturando a si próprio, o livro, a vida, fazendo graça até quando é “difícil encontrar alguma graça”; fazendo poemas para escapar dos “procedimentos”; buscando lembrar, ou não: “Não se lembra de nada? Que sorte a sua, isso é melhor ainda, pois então você pode inventar tudo.”, diz que lhe disse um amigo.

Numa segunda leitura descobri mais um trecho apavorante de tão bonito, do poeta-etnógrafo:

“Ela lhe disse que os poemas são a transparência através da qual ela gosta de ver o mundo e você disse que ela era a transparência através da qual você gosta de ver o mundo e todos os poemas que há dentro dele e ela chorou e disse que ia embora e que não podia mais lhe ver e que não prestava para você.”

Não sei se ele vai concordar comigo (que dificuldade escrever de autores vivos!), mas vi aqui e ali uma admiração dos horizontes e do céu aberto. Da praia, vem as ondas

“que te nutrem
do opaco e do transparente
de que o mundo
é capaz”.

E a menina que

“está fugindo de casa
com toda a sua força
e todas as montanhas”

E um pouco adiante os barcos na marina que

“também pareciam querer fugir de si mesmos”

Receio estreitar os sentidos do livro com tantos recortes, como se estreita o coração do poeta nas páginas de despedida à mãe. E dele pego palavras emprestadas para me despedir também:

“Sinto que se conseguir escrever agora o que se passa comigo estarei salvo, repito isso a mim mesmo algumas vezes, como repito mentalmente o refrão de que onde há obra não há loucura e onde há loucura não há obra e venho escrever.”

Sobre o livro: Monodrama, de Carlito Azevedo, editado pela 7Letras, em 2009, está em 2ª reimpressão. Encontrei o meu exemplar na livraria Travessa de Botafogo. Em 2015, o livro foi traduzido e editado por Aníbal Cristobo para a editora Kriller71, de Barcelona, com uma capa lindíssima da artista Leila Danziger.

Sobre o desenho: Rabiscos no caderno Laloran feitos durante a última aula de aquarela do ano passado, inpirados nas nuvens do Turner. Por algum motivo surgiu um homenzinho a la Tom Gauld diante da montanha. Sem coragem de desenhar algo especial para o Monodrama, achei que dava para misturar aqui. Quem sabe, o poeta diante da tarefa de escrever, escreva mesmo assim. Usei canetinha 0.1 mm e aquarelas Winsor & Newton. O caderninho é novo e as páginas estão enrugando… o scanner não deu conta, pra variar.