Karina Kuschnir

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Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 2)

abracocasalp

“Há, em cada um de nós, uma floresta virgem, emaranhada, inexplorada; um campo nevado onde não se veem nem pegadas de pássaros.” (Virgina Woolf)

Quando meu filho começou a comer frutas e legumes, depois de seis meses de amamentação exclusiva, fiquei insegura. Bora ligar para o médico: devo dar uma banana ou meia banana? Tempos depois, um primo pediatra me contou como os colegas fazem para responder as perguntas das mães aflitas: “basta dizer dois sim e um não, para a mãe não te achar nem rígido nem desatento demais”. Fica um diálogo assim: “– Meia banana? — Sim! — Um mamão? — Sim. — Morango? — Não, morango é melhor não.”

É brincadeira, mas é verdade!

O que isso tem a ver com o sofrimento na hora de escrever uma tese?

Ter que ligar para o pediatra para pedir autorização para dar uma fruta a um bebê de seis meses é só um sintoma. Mostra como eu estava vivendo a maternidade de forma isolada, sem contar com família extensa, vizinhos, comunidade. No meu caso, até que foram poucos momentos assim. Tive apoio, avós participativos, Amigas do Peito e amigas com bebês.

Quando a gente está na gestação do bebê-tese, porém, os sintomas de isolamento podem ser bem piores. No evento sobre saúde mental (que motivou a primeira parte desse post), ouvi depoimentos sobre depressão aguda, gastrite, angústia, anorexia, excesso de entorpecentes ou remédios, tentativas de suicídio, inseguranças profundas, término de relacionamentos, falência, sensação de estar permanentemente em dívida, exaustão, vergonha, falta de apoio, desistência. Além de todos esses sintomas, recebi comentários no Facebook dos que sofreram (e até desistiram da pós-graduação) pela falta de apoio por engravidar, ser vítima de estupro ou perder os pais com câncer.

Para qual pediatra essas pessoas podem telefonar? Quantos telefonemas seriam suficientes?

Escrevi no post anterior que não sou o meu trabalho, currículo ou diplomas. Acredito nisso, mas quem disse que consigo pensar sempre assim, super saudável, sem me definir por avaliações externas? Bem que eu queria ser esse tipo de pessoa: focada, vivendo meu caminho, sabendo que o processo é mais importante do que o fim etc. O problema é que em 89% do tempo eu não consigo! Vivo me comparando e sofrendo, com sintomas bem parecidos com os que os alunos relataram, apenas em doses menores.

Acho que tenho dificuldade de me distanciar porque o trabalho acadêmico não é apenas um trabalho. É algo muito íntimo.  Nós, nossos dados e autores protagonizamos uma história intensa de amor, descoberta e decepção.

Por que sofreríamos tanto se não estivéssemos tão investidos emocionalmente?

Talvez uma parte desse sofrimento venha de nos depararmos com nossa “floresta virgem, emaranhada, inexplorada”, nosso “campo nevado” particular, onde nenhum pássaro pisou ainda, como escreveu Virgínia Woolf. A cada texto, ao invés de decidir a comida do bebê, preciso me perguntar:

O que penso sobre o mundo? O que tenho a dizer? Como posso contribuir para o conhecimento humano?

Parágrafo a parágrafo, duvido da minha capacidade de desemaranhar os pensamentos.

Ao longo da minha formação, as disciplinas eram super teóricas. O objetivo era demonstrar o “domínio da bibliografia”. Aprendi a salpicar meus textos com Weber, Bourdieu e seja-qual-for-o-nome-da-autora-da-moda. Me iludia que isso era fazer jus à história do pensamento — afinal, não se pode inventar a roda a cada texto.

No entanto, hoje, me pergunto: em que momento a repetição do que os outros autores dizem se torna tão automática que já não consigo mais saber o que penso? O que tenho para dizer por escrito? Ou seja: qual pedaço de mim estará no meu trabalho?

Não tenho respostas… Lembro que a escrita da minha tese se tornava menos sofrida quando eu percebia que estava escrevendo algo que fazia sentido no meu íntimo. Eram momentos raros, que faziam o esforço valer a pena. Nos demais, eu estava como no post anterior, perdida de mim, pensando que eu própria era quem ia “deixar de me amar se eu não acabasse a tese”.

A academia, como a maternidade, é transitória. O tempo passa, os alunos se renovam, viram a página. A memória do sofrimento não é passada adiante.

Seria muito bom se pessoas que passaram por situações dolorosas na pós-graduação compartilhassem suas experiências. Acho que precisamos de grupos de apoio que, além de abraços, nos permitam manter essas memórias circulando, de modo a acolher quem esteja passando por dificuldades. (Acolher não é resolver, mas escutar, reconhecer — primeiro passo para ajudar qualquer que seja a situação. Não podemos tratar de algo que não enxergamos.)

Tenho conversado com algumas amigas. Fico sonhando em pensarmos juntas sobre espaços de apoio coletivos no mundo acadêmico. Alguém conhece experiências desse tipo?

Nessas conversas, esclareci algumas coisas que talvez tenham ficado nebulosas na primeira parte do post:

* Para as orientadoras maravilhosas, atenciosas e dedicadas: sim, vocês existem!

* Não sei se orientação com tempo de escuta e paciência é exceção. Talvez a área das ciências humanas seja uma bolha melhorzinha até, pois recebo comentários de doutorandos de outras áreas com relatos punk.

* Aos orientadores em geral, acho importante ficarem atentos a sinais de alunos que têm muita vergonha de estar em sofrimento. É um ciclo vicioso: a pessoa entra em pânico/depressão e tem mais pânico/depressão por estar assim. Daí fica paralisada e não conta para o orientador(a). De vez em quando recebo relatos sobre isso também.

* Aos alunos: suas orientadoras e orientadores também sofrem, e muito.

* Sim, existem pessoas mimadas, preguiçosas, sem qualquer noção dos seus deveres. Mas não acho que a maioria dos alunos em sofrimento seja desse tipo. A pessoa sofre muito justamente porque valoriza sua vida acadêmica. Aliás, acho que alunos hiper exigentes e dedicados são dos que mais adoecem. Não sei a fórmula para identificar os casos do primeiro tipo, mas plágios costumam ser um dos sintomas.

* Prazos não são vilões em si mesmos. Como escreveu uma amiga: “Sem prazos nunca publicaríamos nada, já que todo artigo, por melhor que seja, sempre pode ficar melhor”. Trabalhar dá trabalho: exige foco e capacidade de priorizar, assim como de abrir mão de distrações. O segredo é conseguir equilibrar tudo isso, sem esquecer de se cuidar.

* Essa semana estive igual a vocês: digitando e apagando, digitando e apagando… Reescrevi esse post umas três vezes.  Quis deixar isso registrado para ninguém pensar que escrevo sem revisar ou sem medo.

* Um post singelo e bonito que estou há tempos para compartilhar: “Como libertar-se de seu falso-eu acadêmico?”, de David Berliner.

* Para terminar, indico o site maravilhoso da professora Eva Scheliga com referências, ferramentas, links, artigos e posts sobre escrita, editoração científica e desenvolvimento de projetos de graduação e pós-graduação, além de aplicativos e gadgets úteis para o trabalho acadêmico: https://evascheliga.wordpress.com/

Sobre a epígrafe: O trecho da Virgínia Woolf está em “O sol e o peixe”, livro de ensaios publicado pela editora Autêntica, indicado por uma leitora do blog super querida. Estou adorando; talvez vire um post.

Sobre o desenho: Desenhei essa dupla inspirada em diversas fotos sobre o tema abraço que procurei no banco de imagens Shutterstock. Utilizei canetas de nanquim permanente 0,2 e 0,05 Pigma Micron, num papel Canson (bloco azul escuro, para Mixed Media; prefiro o verso da folha, que é mais liso). Depois escaneei a imagem e resolvi colorir no Photoshop, coisa que raramente faço (só uma vez, aqui).

Você acabou de ler “Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 2)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2017. “Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 2)”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3zq. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 1)

abracocoletivog

A sensação de que a nossa vida depende do sucesso profissional é massacrante. Durante a escrita de um trabalho acadêmico, isso se transforma num pesadelo: além das perdas objetivas, achamos que o fracasso atingirá todas as nossas relações afetivas.

Não sofri tanto na escrita da monografia de graduação, mas assim que tive que fazer o meu primeiro trabalho de curso no mestrado, senti o baque. Inexperiência, cansaço e prazos apertados produziam uma insegurança enorme.

Eu tinha quase certeza: “não vou conseguir terminar isso, serei um fracasso, todo mundo vai me abandonar”.

Foi nessa época que comecei a perguntar para as pessoas que eu amava se elas iam deixar de gostar de mim se eu abandonasse o mestrado (e mais tarde, num desespero bem pior, o doutorado). Cada vez que elas diziam que não, que continuariam me amando, eu ganhava um folegozinho para continuar. Como se eu precisasse ter a segurança de que continuaria existindo como pessoa, mesmo sem dar conta daquele trabalho.

Quanta coisa errada num sentimento só!

Nós não somos o nosso trabalho. Eu não sou o meu currículo nem os meus diplomas.

Foi só depois de ter meu primeiro filho e de me engajar num grupo de apoio de mulheres que entendi. Quando confundimos nossa percepção de nós mesmas com os resultados do nosso trabalho, nossa saúde emocional vai para o espaço.

O pior é que não foram os 12 anos de graduação, mestrado e doutorado que me fizeram enxergar isso. Ao contrário, muitas vezes, na academia, apesar de lermos sobre a exploração dos trabalhadores, não percebemos o quanto estamos sendo explorados. Pesquisamos sobre relações de poder e não conseguimos enxergar quantas estão nos sufocando.

Estou sendo ingênua?

Acho que não. Explico por que. Outro dia fui participar de um evento sobre saúde mental na vida acadêmica. Os relatos de sofrimentos que ouvi foram muitos, muitos mesmo. Escutei também algumas histórias emocionantes de superação, de ajuda mútua e de sobrevivência. Ao final, no entanto, ficou claro para mim que uma das maiores fontes de angústia é causada por essa identificação de alunos e professores com a ideia de “ser” significar “conquistar”.

Muitos docentes já estão tão acostumados com esse estilo de vida que pegam num microfone, diante de dezenas de alunos de pós-graduação que acabaram de relatar suas experiências de sofrimento, para contar que ficaram quinze dias sem dormir, orientaram dez projetos, participaram de 3 bancas e ainda terminaram um projeto de pesquisa no prazo. “É assim mesmo!”

É assim mesmo? Talvez seja, para um docente experiente, que tem seu salário garantido no final do mês, que sabe que terá seus quinze dias de descanso depois. Mas qual é o recado que a plateia recebe? Vocês estão de moleza, vocês não se sacrificam o suficiente.

Pode parecer mentira mas não é: numa instituição de pós-graduação altamente qualificada de ensino do Rio de Janeiro, a principal queixa dos alunos foi o deboche, o descaso diante das suas dificuldades.

Claro que isso não parte de todos os docentes, nem atinge todos os alunos. Mas são muitos, de ambos os lados. Os discentes fragilizados pela insegurança inerente ao aprendizado, os professores sobrecarregados pela naturalização dos deveres da sua própria identidade, ajudando (às vezes de modo inconsciente) a reproduzir o processo na vida institucional.

Ter alguém que nos ouça é o primeiro passo para sair de um problema de saúde mental, por mais grave que ele seja. A pessoa em sofrimento precisa sentir abertura de seu interlocutor para que possa desabafar. Não é necessário ter uma solução, às vezes basta ser escutado.

Voltando ao assunto do título… para vocês verem que a coisa não passa, nem com anos de profissão. Outro dia, eu e uma amiga (com uma carreira linda) trocamos algumas mensagens, ambas nos sentindo mais ou menos na escala de sucesso acadêmico. De repente, me dei conta, me belisquei, acordei. Mais ou menos? Não! Somos maravilhosas!

Bora viver, experimentar, encontrar espaços de apoio e amizades que nos mostrem que merecemos nos amar e termos momentos de alegria, em todas as etapas da vida, seja qual for o trabalho que estejamos fazendo.

Para quem estiver em sofrimento, não deixe de procurar ajuda. Além de seus amigos e familiares, existem alguns canais de auxílio públicos:

Instituto Pinel – atendimento 24h: (21) 2542-3049 (Liguei para verificar e a emergência para problemas psiquiátricos continua aberta: Av. Venceslau Braz, 65 – Botafogo, Rio de Janeiro – RJ.)
Você não está sozinho: ligue 141
CVV (Centro de Valorização da Vida) Rio de Janeiro: (21) 2613-4141
Leiam o ótimo Falando abertamente sobre suicídio.


Não por acaso, alguns dos posts mais lidos do blog são sobre esse assunto:
Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? Parte 1
Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? Parte 2
Sete coisas invisíveis na vida de uma professora
Defesa de doutorado: dez dicas para sobreviver (e aproveitar)
Carta a um jovem doutorando
Dez lições da vida acadêmica 
Não passei
Dez truques da escrita num livro só
e outros com a tag  mundo acadêmico

Sobre o desenho: aproveitei os abraços do meu cartão de agradecimento de aniversário de 2016. Linhas feitas com canetas de nanquim permanente descartável, depois coloridas com aquarela, num caderninho Fabriano (Watercolour 200g/m², 14,8x21cm), que ganhei num evento e ainda não terminei. Para fazer os bonequinhos se abraçando, me inspirei em fotos pessoais.

Você acabou de ler “Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 1)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2017. “Você vai deixar de me amar se eu não acabar a tese? (Parte 1)”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3z5. Acesso em [dd/mm/aaaa].