Karina Kuschnir

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O precioso relato de Harriet Ann Jacobs (1813-1897)

O inverno passou de maneira agradável enquanto eu me ocupava com minhas agulhas, e meus filhos, com os livros deles. (Harriet Ann Jacobs, Incidentes na vida de uma menina escrava, p. 199)

A felicidade profunda e singela de mãe é emocionante na leitura dessas memórias de uma sobrevivente de décadas de maus-tratos, torturas, estupros e tenebrosa vida escondida ou em fuga. Harriet Ann Jacobs não perde o encanto pelas crianças, não apenas seus próprios filhos, John e Louise (no livro chamados de Benjamin e Ellen), mas pelos bebês e pequenos que encontra ou cuida. Esse trecho, dos anos 1850, se passa num breve período de tranquilidade, ainda com várias intempéries por vir.

Longe de mim defender qualquer coisa que a aproxime do mito do amor materno. Mil vezes não. (Elizabeth Batinder e muitas mulheres incríveis já nos mostraram que isso não existe.)

O amor que vejo em Harriet é dela mesma, mulher negra, escravizada ilegalmente (ou legalmente, que diferença faz?) nos Estados Unidos desde o seu nascimento, em 1813, por cerca de 30 anos. Ainda sobre a reunião do trio em proteção, ela escreve:

(…) pela primeira vez em muitos anos, tinha meus dois filhos comigo. Eles aproveitaram muito o reencontro e deram risadas e conversaram com alegria. Eu os observei com o coração transbordando. Cada movimento deles me deliciava. (…) Parecia que uma enorme pedra fora retirada de cima de meu peito. Acomodada num bom quarto com a pequenina por quem era responsável, deitei a cabeça no travesseiro com a deliciosa consciência da liberdade pura e legítima. (p. 199-200)

A persistência do amor numa trajetória que tinha tudo para ser amarga me comoveu. Não é um romance, eu me beliscava para acreditar. Foi uma experiência vivida, com dimensões de sofrimento e luta política proeminentes.

Harriet foi criada por uma avó que se destacava na localidade onde moravam, única responsável por alguns anos de infância feliz e relativa proteção. Aprendeu a ler e escrever na casa de seus escravizadores, ilustrando-se mais tarde com leituras religiosas e abolicionistas.

Cedo entendeu “as dificuldades de ser menina”. Foi alvo do pai de sua “proprietária”, um médico branco, dito “doutor”, cujas práticas de estupro, assassinato e tortura eram rotineiras. Por múltiplas estratégias, Harriet consegue gerar e ver nascer dois filhos com outro homem.

Anos mais tarde, relembrando esse período, ela rezava para que ambos não conhecessem o “peso da corrente da escravidão”, mesmo que os “elos fossem de ouro”. Reflete que preferiria ver seus filhos mortos a subjugados ao doutor que “adorava dinheiro, mas adorava ainda mais o poder” (p. 91-2). Ela escreve: “Dê-me a liberdade ou a morte” (p. 113).

Com o auxílio de amigos, consegue se refugiar na casa da avó, para onde também vão seus filhos, num estratagema de seu suposto “dono” para atraí-la de volta. Ao vê-los, por um minúsculo buraquinho de seu esconderijo, ela narra:

“A alegria na casa da minha avó foi enorme! (…) A nuvem mais escura que pairava sobre minha vida tinha ido embora. Fosse lá o que a escravidão fizesse comigo, ela não poderia acorrentar meus filhos. Se eu precisasse ser sacrificada, meus pequenos estariam salvos. (…) É sempre melhor confiar do que duvidar. (…) Tive minha temporada de alegria e gratidão. Era a primeira vez, desde a infância, que experimentava uma alegria verdadeira.” (p. 122-123)

Tudo isso é escrito com a consciência das perversidades da escravidão e o desgosto pela injustiça de que eram vítimas os negros, tanto ao sul quanto ao norte dos EUA. Após sete anos escondida, Harriet chega a Nova York mas não está a salvo: “O doce e o amargo se misturavam na xícara da minha vida”, ela comenta comparando a dureza de sua luta com a doçura do bebê de quem cuidava: “Quando dava risadinhas e gritinhos, e punha os bracinhos macios ao redor do meu pescoço, eu lembrava do tempo em que Benny e Ellen eram bebês e meu coração ferido se acalmava.” (p. 187).

Anos se passam sem que ela esteja em segurança: “É muito triste ter medo do próprio país” (p. 203). Mesmo em NY, era sujeita às leis da escravidão, com receio constante de ser levada de volta ao sul nos anos 1850:

“Que  desgraça  para  uma  cidade  que  se  classificava  como  livre,  que habitantes inocentes de qualquer ofensa e buscando desempenhar suas obrigações com consciência fossem condenados a viver com esse medo incessante e não ter nenhum abrigo para onde se voltar em busca de proteção!” (p. 209)

Harriet sofria também por não poder participar dos ritos religiosos: “Lá estava eu, naquela cidade grande, inocente de qualquer crime, mas ainda assim sem ousar adorar Deus em qualquer igreja. (…) uma americana oprimida que não ousava dar as caras.” (p. 217)

Quando, finalmente livre, pela ajuda de amigos e não pela conquista plena de seus direitos, Harriet desabafa:

“Quanto mais minha mente tinha se esclarecido, mais difícil era me considerar artigo de propriedade; pagar dinheiro àqueles que haviam me oprimido com tanta angústia parecia tirar do meu sofrimento a glória do triunfo. (…)

Então eu estava  vendida, finalmente! Um ser humano sendo  vendido  na cidade livre de Nova York! O recibo de venda  está  registrado,  e  futuras  gerações  vão  aprender  com  ele  que mulheres eram artigo de tráfico em Nova York no final do século da religião cristã. (…)

Leitores,  minha  história  termina  com  liberdade;  não  da  maneira costumeira, com felizes para sempre. Meus filhos e eu agora somos livres. (…) [Mas] o sonho da minha vida está por se realizar. Ainda não estou com meus filhos numa casa própria, continuo sonhando com um lar que seja meu, mesmo que bem humilde. (…)

Foi doloroso, em muitos aspectos, recordar os anos terríveis que passei no cativeiro. Se pudesse, eu os esqueceria com prazer. No entanto, a retrospectiva não vem totalmente sem alívio, porque com aquelas memórias sombrias chegam lembranças ternas da minha boa avó idosa, como luz, nuvens felpudas flutuando sobre um mar escuro e agitado.” (p. 219-221)

Deixo aqui minha homenagem a essa mulher admirável, Harriet Ann Jacobs (1813-1897). Nós que a lemos no Brasil de 2023 ainda temos muito a aprender com seu precioso relato. Muito obrigada, Harriet.

Como diz Jarid Arraes no posfácio da edição da Todavia: “O fim da escravidão não foi o fim do racismo. Não foi o fim da pobreza, (…) da exclusão, do pensamento supremacista. (…) E, para os que se desconfortam nas cadeiras pensando ‘quantas vezes ainda temos que falar sobre isso’, minha resposta é: todas elas”. (trecho destacado pela editora)

Sobre o livro: Incidentes na vida de uma menina escrava, Escrito por ela mesma. Harriet Ann Jacobs (Linda Brent, pseudônimo). (Todavia, 2019, tradução de Ana Ban; pósfácio de Jarrid Arraes; capa de Oga Mendonça).

Sobre a ilustração: Desenho sobre a única foto reconhecida de Harriet Ann Jacobs, disponível na Wikipedia sobre selo creative commons (restaurada por Adam Cuerden; publicada originalmente no Journal of the Civil War Era). Arte com canetinha japonesa Gelly Roll branca 0.5, da Sakura (trazida por minha prima que vive nos EUA) sobre foto impressa em papel comum na impressora de casa. A ideia de decorar a foto veio da ilustradora Lisa Congdon. Quis homenagear Harriet com sua própria imagem e tentei desenhar algo parecido com as rendas utilizadas no vestido dela e em golas do século XIX.

Você acabou de ler “O precioso relato de Harriet Ann Jacobs (1813-1897)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 

Como citar: Kuschnir, Karina. 2023. “O precioso relato de Harriet Ann Jacobs (1813-1897)“, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3ZS. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Férias de professora

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Quem reconhece uma sacolinha lotada assim, levanta a mão! Taí a imagem que sintetiza as minhas “férias” e a de quase todos os professores que conheço. Pilhas de trabalhos pra corrigir em casa, e a ilusão de que vamos terminar artigos, entregar pareceres, enviar relatórios, marcar orientações e, quem sabe, dar um gás na pesquisa e até uma arrumada nos programas de curso do semestre que vem. [Pausa para suspirar.] Alguém se identifica?

Confesso que pesquei essa listinha de um amigo querido, que me mandou um áudio comentando tudo que ele tinha pensado em fazer nesse recesso da universidade. Ri sozinha de nervoso ouvindo a mensagem no zap. Pessoa mais doida é professor… Não sabe fazer conta da imensidão do próprio trabalho, não sabe dizer não pros textos, pros alunos, pros amigos que pedem pareceres, nem pra si mesmo…

A maioria está assim por conta da precarização do trabalho, claro. O que mais tem é professor com 30 turmas em três empregos. Mas nem todos!

Muitos, como eu, se atolam porque lidam com assuntos e causas que os apaixonam. Só que a vida é como um grande barco de restaurante japonês: para comer as peças que mais gostamos, temos que entubar um monte de kani.

E olha que eu me acho super organizada. Tenho um sistema com todas as informações sobre o que preciso fazer, quando, onde e como. Sei quanto tempo levo nas tarefas e quais compromissos não posso ou não quero aceitar. Tenho clareza sobre as minhas prioridades — filhos, depois eu mesma (amor/saúde/arte incluídos), aulas e alunos, atividades da universidade em geral, a casa e o mundo.

Mas a vida e a antropologia estão aí pra nos lembrar que os laços obrigam. Se amamos nossos bichos, nos cabe cuidar. Se vamos publicar num livro da Routledge (sim, viva!), precisamos fazer o parecer que nos pedem. Se nos dedicamos às aulas, temos que corrigir os trabalhos à altura. A cada “sim”, temos uma dívida em potencial cozinhando. É preciso levar as obrigações a sério, já dizia a saudosa professora Lygia Sigaud.

A doença da Lola me impactou, alguns alunos atrasaram… e a sacolinha cheia de trabalhos foi ficando esquecida num canto. De repente, me pareceu tão bonita, recheada assim. Precisei desenhar e pintar antes de começar a corrigir. Justifiquei pra mim mesma que estava tudo bem, que o prazo ainda não chegou, que tem trabalhos vindo por e-mail ainda, porque foi pro brejo a minha rigidez de professora jovem e determinada. Como diria meu ex-terapeuta, “– É uma vitória quando você chega atrasada, Karina.” Taí o motivo do atraso, alunos queridos. Fiquei pintando os trabalhos de vocês e escrevendo post. Tudo em nome da arte, porque só a arte e os estudos nos salvam.

A pequena “natureza morta” que ilustra esse post une essas duas coisas: arte (a sacolinha preta foi presente do Simpósito anual dos Urban Sketchers em Manchester, de 2016, onde dei uma palestra); e estudos (os trabalhos de duas turmas maravilhosas de 2019-1, um semestre em que me dediquei a estudar e me renovar). Juntos, esses objetos me lembram do motivo de eu estar aqui pensando, escrevendo e desenhando em público, enfrentando a timidez e a preguiça. rs

Obrigada pela companhia, pessoal. Boa sorte e muita tranquilidade para todos que estão às vésperas das seleções de mestrado nesse final de julho. Meu coração está com vocês. ♥

PS: As notas de já foram lançadas, ufa! E pra quem gosta do tema #vidadeprofessora, tem esse post Sete coisas invisíveis na vida de uma professora e esse Quinze coisas para fazer na volta às aulas como professora, além de todos os marcados com a #mundoacademico.

6 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-ou-dignas-de-nota — Amo blogs e newsletters. Aí vão algumas que são ótimas companhias para ler nos momentos em que vocês precisarem de bons conteúdos pra se distrair, sem precisar recorrer às redes sociais:

* Duas Fridas: newsletter do blog Duas Fridas da Helê e da Monix. Sempre com temas ótimos, bom humor e com lembranças maravilhosas de posts passados que me fazem sorrir e esquecer o caos dos tempos atuais.

Ainda não acabei de pensar nisso: newsletter do blog Papiro Papirus, da Rita Caré, portuguesa, artista, bióloga, comunicadora, cheia de humor e maravilhas a nos deliciar com suas descobertas e reflexões.

Eva-Lotta: newsletter do blog da ilustradora alemã Eva-Lotta Lamm que ama o mundo das anotações desenhadas, aprender novas habilidades, pensar o cotidiano de forma lúdica e ensinar. Uma lindeza! (em inglês)

Austin Kleon: newsletter semanal do blog do autor que descobri por meio da Rita Caré (acima) — obrigada, Rita! Traz sempre uma listinha de dez sugestões de leituras, links, imagens interessantes para o autor. Voltada para quem ama livros, arte, educação: ou seja, nós! (em inglês)

Viktorija Illustration: newsletter mensal do blog da ilustradora Viktorija, baseada em Londres. Traz propostas de exercícios, inspirações, dicas e sugestões de materiais de arte. É bem despretenciosa e bonitinha. (em inglês)

• E como faço para saber dessas coisas? Utilizo um app de blogs chamado Feedly, onde “assino” os blogs que gosto, separados por assuntos. Leio no notebook, mas é também o meu app de celular preferido, seguido do Kindle, cheio de amostras de livros que não vou comprar!

E vocês, quais newsletters me indicariam?

Sobre o desenho: Fiz primeiro um rascunho rápido com lapiseira observando a sacola cheia com os trabalhos de uma turma, apoiada na pilha de trabalhos da outra (o caderninho vermelho foi feito por uma aluna super querida da aula de antropologia e desenho desse semestre, uma graça).  Depois desenhei por cima com caneta de nanquim permanente Unipin 0,2, em verso de um papel do bloco Canson Aquarelle XL (capa turquesa). Depois apaguei o lápis e pintei com vários materiais: a sacola preta e o caderno vermelho foram pintados inicialmente com uma guache acrílica (Acryla Gouache, da Holbein, que ganhei ano passado e só agora comecei a experimentar); as letras brancas na sacola foram feitas no dia seguinte (para a base secar bem primeiro!) com caneta Gelly Roll 0,8 branca da Sakura. O restante foi colorido com lápis de cor (os detalhes dos trabalhos) e aquarela (especialmente as sombras).

Você acabou de ler “Férias de professora“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2019. “Férias de professora”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3L4. Acesso em [dd/mm/aaaa].