Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas


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Sentido no caos em Junho/2016!

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Quando eu era pequena, adorava um programa de tevê chamado Vila Sésamo. Lembro vivamente do meu quadro favorito: Ênio e Beto pegavam um pote cheio de meias e brincavam de achar os pares. Eu ficava hipnotizada e feliz de ver os dois juntando as formas e cores que combinavam.

Buscar sentido no caos me traz conforto, desde sempre. Acho que vem daí o meu senso de organização e, bem depois, o fascínio pela antropologia — que não por acaso começou nas aulas da Maria Claudia (Coelho) ensinando análise estrutural dos mitos. Que lindeza aquilo: servia para os gregos, para os índios e para os filmes de James Bond!

Esse amor pela lógica me faz insistir no otimismo, sempre. Há crianças no mundo, há idosos, há milhões de pessoas vulneráveis. Temos muitos pares de meias para formar. Há muito que fazer, pra ontem, por muitos caminhos possíveis. Tenho uma amiga querida que vai todo sábado trabalhar com jovens na periferia, anônima. Não é para divulgação, é o estar dela no mundo: trocar, agir, viver.

Bem-vindas as meias e bem-vindo o mês de junho!

4 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-hilárias-ou-dignas-de-nota das últimas semanas:

♥ Alice, que já usava óculos para astigmatismo, começou a reclamar que não estava enxergando o quadro na escola. Ainda tentei argumentar que ela tinha feito exame há poucos meses. — Mãe, estou dizendo que piorou! Dito e feito: diagnóstico de 0.5 graus de miopia em cada olho. Sorte nossa que ela gosta de usar óculos (e que temos uma oftalmologista ótima do plano!).

♥ Tem coisa mais deliciosa do que receber um presente de verdade pelo correio, com direito a dedicatória e florzinha? Obrigada, querido tímido amigo, pelo exemplar que será lido em breve de De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau, de Mariana de Campos Françozo (Ed. Unicamp).

♥ O desastre com o Césio 137, em Goiânia, foi proposto como tema de trabalho aos alunos do ensino médio na escola do Antônio. A peça de teatro que ele montou com um grupo de amigos tocou tanto as pessoas que foi apresentada em várias turmas. E a atividade valeu nota para disciplinas de áreas diversas como química, português, história, sociologia. Como o mundo seria melhor com um ensino assim para todos, universidades inclusive…

♥ Meu novo bebê queridinho é o Francisco, um pequeno humano que teve a sorte de nascer irmão do gato-escritor Borges. Fui visitar o carequinha da família, apertei e beijei, mas o dono da casa nem veio falar comigo! Agora ele desatou a escrever, tentando processar a novidade de dividir a vida com mais um ser estranho. Sorte nossa, que lemos o blog dele!

Sobre o desenho: Meias desenhadas com canetinha Pigma Micron Sakura 0.2 e coloridas com canetinhas diversas: Tombow brush, Koi coloring brush pen (Sakura) e Staedtler triplus color. Tentei formar uma paleta “outono”, usando só umas poucas cores para todos os desenhos. Agora podem brincar de achar os pares!


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Brincando de pesquisar – Ideia para aula lúdica

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Como prometi, hoje vou explicar a brincadeira que fiz com a turma de Antropologia II logo na primeira semana do semestre. Acho que o exercício vale para ensino médio, graduação ou até pós, por que não? Resolvi postar aqui no formato de “plano de aula”. Assim, fica mais fácil para quem quiser experimentar com seus alunos. Depois me contem!

Objetivos da aula:

. Compreender que os indivíduos são diferentes e levam essas diferenças consigo, para além das diferenças nos seus aspectos visuais, que impactam no nosso primeiro contato.

. Compreender que os indivíduos são semelhantes dentro de certas condições sociais; e isso fica claro quando os comparamos sob certos critérios.

. Compreender que precisamos levar em conta essas duas dimensões (acima) para conhecermos a nós mesmos e aos outros.

. Uma pesquisa deve gerar conhecimento e nos transformar. O papel começa em branco, mas deve ser preenchido por algum conteúdo. Precisamos aprender algo a partir de uma pesquisa.

. Uma pesquisa pode ser divertida e interessante; pode ser vivida como um enigma, um quebra-cabeça que desvendamos.

. Fortalecer a autonomia: mostrar que podemos e devemos pensar a partir dos nossos dados, classificá-los e interpretá-los.

Material necessário:

. Canetas para quadro branco

. Papeis A4 para cortar em 6 (É melhor o professor levar 1 folha para cada aluno)

. 6 pedaços de papel com números grandes de 1 a 6 para classificar as respostas sobre uma mesa

Dinâmica – Como foi feita a aula:

Avisar que: As respostas são anônimas; não é para nota; não tem resposta certa ou errada; conta como participação. Pedir que tentem ser bem específicos na resposta.

Preparação: Pedir para os alunos cortarem o papel em 6 pedaços e numerar. (Desenhei um papel com divisão em 6 no quadro)

Quadro: Escrevi as perguntas abaixo no quadro.

Alunos escrevendo: Pedi que os alunos respondessem nos pedaços de papel numerados (cada papel recebeu duas respostas, por ex., 1a. e 1b.), dando aproximadamente 1 minuto para resposta (sem precisar copiar as perguntas).

1) Desde que me entendo por gente, tenho…
a. dificuldade com..
b. facilidade com…

2) Na minha vida…
a. a maior tragédia é…
b. o maior privilégio é…

3) Meu traço mais marcante para…
a. os outros é…
b. para mim é…

4) Hoje em dia…
a. meu maior medo é…
b. minha maior coragem é…

5) Se eu pudesse, gostaria de…
a. aprender a…
b. viajar para …

6) O que me faz…
a. mais feliz é…
b. mais infeliz é…

Após as respostas:

. Cada aluno colocou suas respostas na mesa de acordo com o número correspondente. Ou seja, ficamos com pilhas de respostas 1, 2, 3 etc.

. Cinco alunos voluntários vieram, um de cada vez, ler 6 respostas aleatórias, uma para cada número, formando assim um  “personagem”. Foi emocionante, engraçado, estranho, surpreendente, interessante! Em muitos casos, percebemos repetições/padrões, mas também diferenças, distâncias e individualidades.

. Pedi para eles escolherem um número para eu ler todas as respostas. Eles escolheram o número 6 (Feliz/Infeliz). Achei bem significativo, pois foi nesse item que apareceram algumas imagens mais subjetivas. Li as respostas para a pergunta 6B (motivos de Infelicidade) e fui dividindo em dois grupos (em quantidades quase iguais). Perguntei: “Com qual critério eu dividi essas respostas?”. Eles responderam corretamente que foi “infelicidade social” (por ex. desigualdade social) ou “infelicidade individual” (por ex. terminar um romance). Peguei o grupo “social” e li as respostas da questão 6A (motivos de Felicidade). Muitos papéis foram parar na pilha “individual” nessa questão. Ao final, restaram apenas 4 papéis na resposta 6A do tipo “social”! A turma foi me ajudando a interpretar as respostas binariamente, mas acabamos decidindo criar uma categoria meio-termo para respostas com a palavra Arte e Amor em geral. O restante ficou no grupo “individual”. Todo o processo gerou bastante diversão geral, e também um material para debater sobre diferenças, semelhanças e possibilidades de classificação, como era o objetivo da aula desde o início.

. Fui ao quadro novamente e tentamos classificar as perguntas (da 6ª para 1ª) em tipos de informação. Com a ajuda dos alunos, decidimos que cada dupla de perguntas correspondeu aos seguintes recortes mais gerais: 1-Aptidão/Personalidade; 2-Realidade/Sociedade; 3-Personalidade/Identidade; 4-O que nos move/Atitude; 5-Desejos/Sonhos/Futuro; 6-Gostos/Sentimentos/Aspectos sociais vs. psicológicos. (Os termos são deles!)

. Fiz uma observação de que não coloquei nenhuma pergunta relacionada a aspectos visuais das pessoas de propósito, para não criar constrangimentos (por ex. risos da turma diante de alguma resposta), mas que eles precisariam ser levados em conta também. Expliquei que as perguntas foram apenas pretextos para mostrar como é interessante conhecer as pessoas e seus projetos… Falei da importância de sairmos do piloto automático (na vida e no pensamento) para podermos aprender e gerar conhecimento.

Nossa avaliação:

. A turma riu em vários momentos (de leituras das respostas, especialmente). Achei que criamos um ambiente de atenção, respeitoso e divertido, bem favorável à proposta. Notei um sinal positivo nos tempos de hoje: ninguém saiu mais cedo ou pareceu estar no celular!

. Fiquei com vontade de reproduzir aqui um monte de respostas legais, mas o post ficaria ainda mais enorme… Se ficaram curiosos, façam a experiência e vejam o que acontece.

. A monitora Aimée Weiss fez uma avaliação por escrito que me deixou muito feliz (obrigada, Aimée!). Um trechinho para vocês:

“O exercício foi bastante interessante justamente pela necessidade de autoanálise dos alunos em relação a sentimentos, personalidade, isto é, aspectos interiores, não externos, e que, por isso, precisam de maior reflexão para serem constatados. Não se trata de características dadas, evidentes/visíveis, mas sim que, para percebemos, faz-se necessário olhar e observar a nossa vivência pessoal. Foi muito interessante perceber a grande quantidade de pessoas que se diziam tímidas ou com dificuldades de contato social. Acho que as tarefas desenvolvidas durante a aula incentivam uma participação e construção coletivas. Este aspecto, juntamente com o exercício de etnografia, será muito importante como desafio para essas pessoas, de maneira a sair de suas zonas de conforto para se comunicar. Ao mesmo tempo, os alunos mais extrovertidos vão precisar de mais cautela para a atividade de observação, contemplação, sem necessariamente recorrer à imediata comunicação verbal. […] A atividade também comprovou a importância da nossa autonomia, da colocação das nossas impressões e observações para alcançarmos conclusões numa pesquisa. Mostrou também aos alunos que qualquer tema pode ser usado para pesquisa, desde que demonstremos que temos algo a conseguir captar, uma descoberta a fazer. […]  Pude observar um grande interesse e concentração dos alunos com a atividade, justamente por ela sair do padrão acadêmico. Esses exercícios tornam a aula muito mais leve, prazerosa e divertida. Também notei que eles não ficaram vidrados no celular. :-)”

Esse é o primeiro post de uma série sobre aulas lúdicas:

E talvez vocês gostem de outros posts com a tag mundo acadêmico.

Para quem se interessa pelo tema: o blog tem posts sobre o tempo pra fazer a tese – parte 1 e parte 2como explicar sua tese, dicas para aproveitar a defesa de doutorado e outros textos sobre minhas experiência na importância de escutar, nos truques da escrita, na elaboração de uma carta para a seleção de mestrado, na escrita de projetos, nas defesas de tese, nas dores de não passar, na falta de tempo, no ensino de antropologia e desenho, no aprender adesescrever, nas agruras de ser doutoranda, na vida dos alunos, no sorriso do professor, nas lições da vida acadêmica, na importância de não ser perfeito e nas muitas saudades de Oxford 1, 2, 3 e 4!

7 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-divertidas-ou-dignas-de-nota da semana passada:

. Agruras de hospital: caí na mão de um técnico de enfermagem que mais pareceria um carcereiro! Ele me examinou (39,3 graus de febre, pressão baixa, desidratada) e, ao invés de ajudar, começou a me dar bronca: “bota a máscara porque tá dando muito H1N1” (a máscara me sufocando), “por que você não tomou remédio pra febre?” (eu tomei, moço); e depois de me furar várias vezes, ele não desistia: “a culpa é da sua veia que não tá aparecendo”! Ainda bem que minha sobrinha surgiu com a Wilma (outra técnica de enfermagem) e me salvou!

. Alice se recuperou das contusões e está apaixonada por tocar Lisbela no violão. Sei que elogio de mãe não vale, mas está lindinha demais! Pena que essa semana foi a vez dela ficar resfriada…

. Começamos maio com um plano familiar bem modesto: ler uma página de “Viagem ao centro da terra”, de Julio Verne, todos os dias. É o mesmo exemplar que li quando tinha a idade deles.

. Antônio, apesar da exaustão do ensino médio, está pintando e desenhando muito!

. Descoberta culinária da semana, nessa vida pós-açúcar: nibs de cacau orgânico. Uma delícia pra jogar em cima de qualquer fruta! Tem em qualquer loja de produtos naturais.

. Assisti a palestra TED “Uma história visual do conhecimento humano“, do pesquisador Manuel Lima. Além do conteúdo lindo e interessante, olha a coincidência: ao mandar o link para um amigo querido, ele me responde que tem o livro do autor sobre o tema! Peguei emprestado, claro. 🙂

. E outra palestra TED, essa para se divertir, sobre procrastinação, com o Tim Urban.

Sobre o desenho: Paleta de cores que fiz em 2015, no início do meu curso de aquarela no Atelier Chiaroscuro, da professora Chiara Bozzetti. Achei que dava uma boa ilustração para essa aula em que produzimos um monte de papeizinhos. As manchas foram feitas a partir das três cores primárias (as primeiras à esquerda) com todas as outras cores da minha paleta na época. É sempre um exercício válido. Recomendo!

Você acabou de ler “Brincando de pesquisar – Ideia para aula lúdica“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2016. “Brincando de pesquisar – Ideia para aula lúdica”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: http://wp.me/p42zgF-lx . Acesso em [dd/mm/aaaa].


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No que acredito

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“A vida virtuosa é aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento.”

“Duas pessoas entre as quais haja amor perseveram ou fracassam juntas, mas quando dois indivíduos se odeiam, o êxito de um constitui o fracasso do outro.”

“Não há atalho para uma vida virtuosa, seja ela individual ou social. Para construir uma vida virtuosa, precisamos erigir a inteligência, o autocontrole e a solidariedade.”

“Mas nada se poderá conseguir procurando garantir a segurança de uma parte da humanidade à custa de outra (…). Somente a justiça pode conferir segurança; e por ‘justiça’ me refiro ao reconhecimento da igualdade de direitos entre todos os seres humanos.”

Bertrand Russell, No que acredito, 1925

Essas frases saíram de um livrinho que caiu no meu colo essa semana. Ia dar só uma olhada, mas acabei lendo o pequeno volume inteiro! Que sabedoria a desse filósofo que escreve sobre temas complexos de uma forma tão clara e fácil.

3 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-hilárias-ou-dignas-de-nota da semana:

* Começou o primeiro semestre da UFRJ, e tenho duas turmas. Senti as mesmas apreensões de sempre: não vou dar conta, estou muito cansada, não tenho mais nada para dizer… Mas o encontro com os alunos e alunas reais foi ótimo. Propus exercícios novos em sala de aula (tanto para a Antropologia II quanto para a turma de Antropologia e Desenho) e acho que deu para nos divertirmos bastante! Depois conto mais aqui, se vocês quiserem — será que alguém tem esse interesse?

* Alice foi eleita representante de turma, junto com uma amiga. Fiquei feliz por ela. Por experiência (Antônio também já foi representante), sei que vai ser um caminho de muito aprendizado. Não é fácil.

* Antônio se apresentou com a peça Vida Severina, do grupo de teatro da escola. Foi lindo, emocionante, surpreendente! E claro que sou totalmente isenta para elogiar. No palco ele nem parecia meu filho!

Sobre o livro: Bertrand Russell, No que acredito, LP&M Pocket (tradução de André Godoy Vieira). Depois fiz uma rápida pesquisa no blog Brain Pickings e achei vários posts legais sobre o autor.

Sobre o desenho: Aquarela feita a partir de uma foto que tirei numa rua perto de casa. A árvore estava linda, toda colorida nesses tons. Estou tentando ser mais consistente no uso do meu diário gráfico, fazendo pelo menos um desenho por dia. Para não ficar de cerimônia, comecei essa nova série no final de um caderno Laloran antigo, detonado, pois tinha sido encharcado de água pelas patinhas do Ulisses… Assim não tem como ter pena de errar ou gastar.  A data no canto direito foi feita com um carimbo muito legal: “mini dater”. Não lembro de onde é o meu, mas consegui comprar com facilidade o refil da almofada de tinta. Para as flores, pintei direto com caneta pincel waterbrush e tintas Winsor & Newton. Estou tentando ser mais solta do que nos meus últimos desenhos com contorno. Aproveitei o momento de uma conversa telefônica matinal para pintar, e acho que a leveza refletiu as palavras sábias da minha amiga parteira: “penso, logo existo; penso demais, logo desisto”!

 


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As cores de cada dia

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“O tolo pensa que é inteligente, mas o homem inteligente sabe que é tolo.” (Shakespeare*)

Há alguns anos vi num filme uma cena que me tocou: uma família reunida para jantar começa um jogo. Cada um deve falar o que aconteceu de pior e de melhor no seu dia. Adotei a brincadeira aqui em casa com as crianças; e aos poucos fomos criando nossa própria forma de jogar.

Primeiro, fazemos uma rodada com o “pior do dia” de cada um. Adotamos o princípio de nunca usar uma situação entre nós como a pior coisa. É uma auto-censura amigável que acabou preservando o momento do jogo.

Em seguida, fazemos uma nova rodada onde cada um fala sobre o que foi o “melhor do seu dia”. Logo nas primeiras semanas percebemos que não valia dizer que o “melhor do seu dia” estava sendo o momento do jogo. Já estava perdendo a graça ouvir o mesmo “melhor do dia” todos os dias! Mas isso só confirmava a delícia de ter esse momento de jogar/conversar.

Com o tempo, surgiram outras regrinhas. Resolvemos que não vale falar algo abstrato, como “fiquei triste” ou “o dia foi animado”. E também não valem os desastres do mundo lá fora. Queremos ouvir: o que aconteceu que te fez desanimar ou se alegrar? Em que situação, com quem? E cada um dá os detalhes que quiser ou puder.

Quando estamos empolgados, fazemos uma rodada extra de escolher quem teve o “pior pior do dia” e quem teve o “melhor melhor do dia”. Daí criamos compensações para o mais sofrido ou festejamos o mais feliz.

Em algum momento, resolvemos que não vale “não ter um pior” ou “não ter um melhor”. Isso gera coisas engraçadas como o “pior do dia” ser só um garfo que caiu no chão. Mas gera também um esforço para encontrar uma pontinha de alegria naquele dia em que a alma está nublada (o melhor desse dia pode ser “eu apertei o gato Charlie”. Esse é um velho truque nosso para ter sempre uma coisa boa no dia ruim. Revezamos os gatos, mas o Charlie é imbatível como a melhor fonte de conforto da casa.)

A Alice também inventou de fazer algumas rodadas com perguntas diferentes, como: “Qual foi a coisa mais engraçada do seu dia?” ou “qual foi a mais estranha?” e assim por diante. E adoramos quando temos visitas para participar. Uma vez, na nossa fase sem-casa, convidamos uma amiga da vovó para a conversa. Ela estranhou muito ser chamada a “falar”! Mas foi tão bonito, porque o pior do dia dela tinha sido fazer um “molho que deu errado” e o melhor foi o “bolo de cenoura da Jô” que trouxemos de presente! Tudo girou em torno das comidas, e pudemos conhecê-la mais de perto. (Ah, e o bolo de cenoura da Jô é sempre o melhor do dia de quem prova!)

Uma das supresas dessa brincadeira é ver que frequentemente o pior e o melhor do dia são parte da mesma situação. Como em: “O pior do meu dia foi brigar com a minha amiga”; e o melhor foi “fazer as pazes com a minha amiga”. Ou em: “o pior do dia foi ter que escrever um trabalho longo”; e o melhor do dia foi “ter terminado o trabalho longo!”. Ou “o pior do dia foi ficar muito tempo na internet” e “o melhor do dia foi um poema que li na internet na timeline do Carlito Azevedo”.

Se machucar/se curar; chorar/ser consolado; ter preguiça/se levantar; sofrer/melhorar; viver algo difícil/superar. Parece que esses contrastes andam mais juntos do que a gente pensa.

E o melhor de falar-confiar-ouvir é a imensa intimidade que surge entre a gente, devagarinho, sem pressão, com choro e com risada.

E já que estamos falando de intimidade, e as crianças hoje não estão aqui comigo para jogar, aí vai o meu pior e o meu melhor do dia:

O pior — Saber que pessoas muito queridas estão sofrendo. E pra elas eu cito “E nem tente levar em seus ombros a sua sorte: não queira carregar os seus sofrimentos sozinha, deixando-me de fora. Por este céu, que agora empalideceu diante da nossa dor, me diz o que tu queres e eu vou estar ao teu lado.” (Shakespeare**)

O melhor — Como diz a Alice, foram dois “melhores”, então vou ter que roubar hoje. O primeiro foi ouvir as apresentações dos alunos sobre as suas etnografias na nossa última aula antes do recesso de final de ano! O segundo é estar aqui escrevendo esse 100º post! Mas o momento do jogo não vale, né? 😉

Sobre as citações: A epígrafe é uma fala do personagem Touchstone (o bobo-da-corte) da peça Como gostais, de Shakespeare, na tradução de Millor Fernandes, para a edição de bolso da LP&M. A segunda citação é da personagem Celia, amiga da mocinha Rosalinda, da mesma obra. Adoro essa peça! Não citei muito porque fica difícil entender as falas sem os contextos.

Sobre o desenho: Semana passada, relendo um texto do antropólogo Edmund Leach, percebi uma frase que nunca tinha me chamado atenção antes. Ao falar das variedades do comportamento humano, ele diz: “são como as cores do arco-íris; as aparências são enganadoras; quando se olha de perto para a imagem, as descontinuidades desaparecem”. E essa metáfora das cores-sem-fronteiras ficará gravada para sempre na minha memória! Queria ter feito uma ilustração especial para o post, mas essa já estava no caderninho pronta. Fiz os contornos com canetinha Unipin 0.05 e as cores são das variadas aquarelas que tenho na minha paleta atual. (A frase do Leach está no livro A diversidade na antropologia, das Edições 70, de Lisboa.)

 

 


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A possibilidade de escutar

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Numa aula de antropologia do mês passado, convidei os alunos para sentarem no chão e escutarem o silêncio por três minutos. Só isso. Escutamos o espaço, o tempo, os nossos pequenos sons, os ruídos dos colegas, os alarmes da rua, a conversa dos aparelhos de ar-condicionado.

Foi tão simples e tão bom. Um momento de paz coletiva. Saíram coisas bonitas na conversa posterior. Falamos dos filtros que impomos ao que escutamos e, principalmente, da dificuldade de ouvirmos uns aos outros; e do desafio de compreender o que as pessoas que nós estudamos têm a dizer.

Agora à noite, estou lendo os relatórios sobre as palavras que surgiram nos trabalhos de campo. Tem boca de cena, alma penada, espera, frentes, coração, treta, lobo, beijo, tic tac, parça,  guia, lunfa, segura, ownn! É uma lindeza de ver como eles decifraram os contextos e significados desse vocabulário. Recupera o lugar do enigma na pesquisa. Ou, como disse o poeta: “Cada eco leva  Uma voz   Adiante”.

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Nesses tempos difíceis, deixo essa flor em homenagem aos meninos assassinados, mas também aos jovens e vivos. Que a gente consiga se escutar e escutar uns aos outros. Estamos precisando.
Escutas: O poeta citado é Arnaldo Antunes e o verso vem da música Pra Lá.  Antes dos três minutos de silêncio na aula, ouvimos juntos esta palestra de Julian Treasure (tem legenda em português).
Sobre os desenhos: Reproduções de caderninhos leves que costumo usar para desenhar no metrô e onde anoto os sons e palavras que escuto pelo caminho. Desenhei também alguns dos temas das páginas internas ao redor. Utilizei as canetinhas Pigma Micron 0.05 e aquarela para colorir. A flor foi feita com os mesmos materiais, copiada de um livro de botânica.


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Um projeto todo seu

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“…se tivermos o hábito da liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos… (…) Trabalhar assim, mesmo na pobreza e na obscuridade, vale a pena.” (Virginia Woolf, Um teto todo seu)

Para milhares de pessoas, maio não é o mês do outono, dos taurinos, da crise… é o auge da temporada da série Preciso-Escrever-Meu-Projeto-de-Doutorado-Perfeito. Na maioria das áreas de ciências humanas, está todo mundo tentando finalizar um projeto estruturado, redondo, consistente, se-deus-quiser-aprovado-com-bolsa!

Como não tenho como ajudar a todos que me procuram, resolvi contar aqui algumas experiências nesse front. São episódios que me ajudaram (e ainda ajudam) a pensar o que é realmente essencial para criar um projeto.

* Paixão — Imaginem que logo nos primeiros meses da minha vida acadêmica descobri que a escolha de um tema de pesquisa era um caso de vida ou morte. Ok, não exatamente morte-morrida, mas aquela morte social básica, em que você é banido, ie, morre para o mundo, como nos ensinaram o Elias, o Dumont, o Geertz e tantos outros. Pois lá estava eu no final do primeiro ano de mestrado, já “escolhida” pelo orientador, mas sem tema de pesquisa. (Sim, bons tempos… nem falem.)

Pensa daqui, pensa dali, resolvi que queria ser útil para a sociedade estudando os parlamentares municipais (um tema bem estranho na antropologia da época, que surgiu do meu trabalho de jornalista). Ao saber da minha escolha, o Gilberto (Velho) reagiu horrorizado. Fez uma cara de nojo e disse que não, não poderia me orientar de jeito nenhum! Senti o sangue descendo, o coração parando, o exílio chegando. Mas, para minha surpresa, consegui murmurar: “– Que pena. Vou ter que procurar outro orientador.” 

É verdade, tenho testemunha. Uma amiga estava pelos corredores do Museu e me amparou. Graças à nossa conversa, me dei conta de que estava no caminho certo: eu tinha um projeto em que acreditava, e estava até pronta para “morrer” por ele. E não é que, no dia seguinte, o Gilberto me ligou dizendo que ia me “aceitar” de volta, com parlamentares e tudo? Lamentava que eu não desse continuidade à pesquisa que ele tinha pensado… E eu precisava entender que ele tinha aversão a surpresas etc. Mas, cá entre nós, acredito que o projeto se salvou mesmo pela paixão com que me dispus a defendê-lo.

* Paciência — Um ano e meio depois, ao invés de navegar nas primeiras ondas da passagem-direta mestrado-doutorado, optei por terminar a dissertação. Defesa feita, entrei no melhor dos mundos: dava aulas, trabalhava como pesquisadora e ainda podia assistir Seinfeld sem culpa! Mas quando chegou a hora de fazer o projeto de doutorado: cadê a ideia? Sem paixão, mas convencida de que já dominava os truques do ofício, costurei um projeto juntando alguns temas que sobraram do mestrado com autores que eu lia para dar aula. Nem precisava me preocupar com o quesito “orientador”, certo?

Errado. Projeto entregue. Projeto lido: “– Karina, vem cá, que projeto é esse? De onde você tirou isso? Cadê a antropologia?” Cadê isso, cadê aquilo…? Ooops. Foi mal. Tem razão. Dessa vez, não tinha nada a ver com escolha de tema. Era projeto-preguiça mesmo.

Bora fazer tudo de novo. Porque certa vez um terapeuta me disse que eu era uma sobrevivente. Pra quê! Me apeguei a essa ideia. Se tem um naufrágio, eu nado, até sem saber nadar. E, pra quem sobrevive a afogamento, projeto-de-doutorado-ruim tá mais para quatro-pneus-furados ao mesmo tempo… É chato, é trabalhoso, mas dá para consertar.

A solução? Muita, muita paciência. Paciência com os próprios erros e paciência para recomeçar… Teve que ser paixão construída… Revi o material de pesquisa do mestrado, escutei novamente as arguições da defesa, vasculhei todos os autores que pude e lá fui enfrentar a página vazia, de domingo a domingo — naquela fórmula chata-de-tão-verdadeira: uma palavrinha de cada vez.

* Prática — Tive a sorte de praticar num “laboratório” no Museu Nacional onde encontrava exatamente a mesma cena todos os dias de manhã: meu orientador lendo. Lendo, relendo, revisando, escrevendo sobre o que lia, reescrevendo. Da mesma forma, quando frequentei a biblioteca da professora Cleonice Berardinelli, frequentemente a encontrava concentrada com um livro nas mãos. Uma vez o título era o clássico “A cidade e as serras”, de Eça de Queirós — autor sobre o qual ela é uma grande especialista. E perguntei: “Dona Cleo, a senhora precisa reler esse livro para dar aula?” E ela me respondeu com toda humildade: “Sim, querida. Releio, e sempre aprendo coisa novas.”

Aprendi com eles que a prática essencial na nossa área é assim, muito simples: ler e escrever. Ler, ler, ler, ler, ler muito, é equivalente a um aluno de violão tocar “Let it be” mil vezes. É um trabalho individual, solitário, onde se aprende a lidar com o tédio, a perceber as nuances das palavras/acordes, a criar novos pensamentos e perguntas a partir daqueles. Escrever, escrever, escrever, escrever muito. Idem, ibidem.

Sim, dá para treinar algumas etapas de pesquisa na sala de aula. Mas, como dizia o meu amado professor Wagner Teixeira: “A prática se aprende na prática; o importante [na faculdade] é aprender a pensar.” Ou seja, pesquisa de verdade só se faz fazendo. Um trabalho de fôlego exige circunstâncias demais, impossíveis de repetir em laboratório.

É para isso que servem os livros: milhões de páginas já foram escritas sobre milhões de pesquisas. Um bom levantamento bibliográfico, quando lido, te leva a centenas de práticas e reflexões sobre essas práticas. É a nossa escala musical diária, sem a qual não desenvolvemos projeto nenhum.

* Um projeto todo seu — Nos mais de vinte anos depois daquela primeira experiência, muitas vezes tive dúvidas. Será que está bom? Será que vão gostar? Será que já não escreveram isso antes? Será que serve para alguma coisa? Essas dúvidas nunca se dissolvem totalmente…

“Desde que vocês escrevam o que desejarem escrever, isso é tudo que importa; e se vai importar por séculos ou apenas horas, ninguém pode dizer.” (Virgina Woolf, Um teto todo seu)

E para não terminar sem nenhum conselho prático de verdade, aí vai: a melhor coisa que já li sobre montagem de projetos é o clássico Como fazer uma tese, de Umberto Eco — baita de um livrinho perfeito, atualíssimo em toda a sua antiguidade.

Ufa, e se chegaram até aqui: meus votos de sucesso aos novos projetos! Estou torcendo por vocês!

* 7 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-hilárias-ou-dignas-de-nota da semana:
* Eu — Alice, qual o sentido da vida?
Alice — Não sei, mãe.
Eu — Se vc pudesse fazer algo, o que você faria?
Alice — Salvar o país, mãe.
* No metrô, uma senhora dá lugar a outra senhora, aparentemente mais velhinha. A senhora que senta tira um cartão do metrô da bolsa e oferece de presente para aquela que levantou. A cena me comove.
* Reli um livro infantil do Antônio só para encontrar um verso que amo: “O menino diz: — Gosto de você, aranha. Porque você não pica nem arranha.”
* Resolvi reler nas horas em que estou no transporte o “Cartas a Theo”, de Van Gogh ao irmão. É de doer de tão lindo. É meu antídoto pessoal contra a crise.
* Presente maravilhoso: ganhei o catálogo do IV Encontro Nacional de Ilustradores Científicos, organizado pelo professor, artista e ilustrador científico Paulo Ormindo.
* Por conta do Ulisses, fui à pequena loja veterinária do Jóquei Clube na semana passada. Passar pelas baias dos cavalos é mágico… e me lembra do meu sonho impossível de ter um cavalo quando era pequena.
* A melhor definição do Rio de Janeiro esta semana: “A cidade mais feia do mundo que por acaso ficava num lugar maravilhoso” (de Carolina Massote)

* Sobre o desenho: Dizem os profissionais do livro ilustrado que a boa imagem deve acrescentar algo ao texto… Então vou deixar para vocês interpretarem… Os gatinhos foram feitos com aquarela Winsor & Newton em papel Strathmore, e depois desenhados com canetinha nanquim Muji 0.38.

* Sobre o livro: Já fiz um post só sobre Um teto todo seu da Virginia Woolf, um livro que marcou a minha vida pra sempre.

* Sobre Paixão, paciência e prática: Minha inspiração para escrever sobre esses “três Ps” foi da aula online do artista indiano Prashant Miranda, na Sketchbook Skool (infelizmente é só para alunos pagantes… )


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Defesa de doutorado: dez dicas para sobreviver (e aproveitar)

sonho duplo

 “And now that you don’t have to be perfect, you can be good.”
John Steinbeck, East of Eden

Quando assisti pela primeira vez uma defesa de doutorado, saí empolgadíssima para comentar com meu (futuro) orientador:

Eu — Puxa, quero ler aquela tese: deve ser maravilhosa!

Ele — Hã? Maravilhosa? Como assim? A tese quase não foi aprovada!

Eu — Ué… Mas a banca elogiou tanto!

Ele, já rindo — Você não entendeu nada, Karina… A banca elogiou pontos sem importância; mas criticou a estrutura do trabalho!

Eu — É? E ele virou doutor assim mesmo?

Ele — Sim!

Quase 25 anos depois desse episódio e após minhas próprias defesas e participações em bancas, acho que aprendi alguma coisa…

Em homenagem às centenas de teses que serão defendidas nas próximas semanas Brasil afora, aí vão dez dicas para sobreviver (e aproveitar) esse momento:

1) Muita gente se apavora antes da defesa, lembrando do pânico que foi a prova de seleção. Nada a ver. Se o seu(sua) orientador(a) é minimamente sério, se a sua defesa está marcada e se a sua tese está entregue, relaxe: você vai passar. (Mas não fica bem mandar imprimir convite para a festinha da noite, muito menos convidar os membros da banca com antecedência!)

2) O que mais me ajuda nas situações de estresse acadêmico é me preparar. Agora que estou do outro lado, sei que uma fala bem ensaiada de 20 minutos é tudo que a banca sonha em ouvir. Algo que Informe a platéia mas não canse os examinadores… Também é prático imprimir a apresentação em letra grande. Tenho implicância com power-point de texto em defesa, mas para imagens ou filmes, às vezes é inevitável.

3) Se na hora de montar sua apresentação você for como 95% dos doutorandos que ainda não sabem exatamente sobre o quê é a tese…, relaxe: você é normal. Os outros 5% são uns chatos.

4) A defesa é um ritual mas não um teatro infantil requentado. Ao contrário! Na minha experiência e na de muitos que já passaram por isso, a defesa é um dos melhores momentos da vida acadêmica. Durante quatro horas, cinco professores se dedicarão exclusivamente a debater o seu trabalho com você. Quando isso vai acontecer de novo? Talvez só numa homenagem póstuma (e você não vai estar lá para ver).

5) Para aproveitar ao máximo, umas dicas aparentemente bobas, mas úteis: usar a sua roupa mais apresentável-com-conforto no dia (roupa nova é arriscado, vai que aperta), ir ao banheiro antes, levar água e uma comidinha discreta para o intervalo (chocolate, castanha, uva). Na minha defesa, levei aqueles saquinhos com mel dentro; mas eu mordia, mordia, e nada de abrir… foi horrível. O doutorando mais engraçado que já vi começou a defesa instalando um verdadeiro piquenique na mesa: comidinhas variadas, bebidas, guardanapos! (E passou super bem. Foi considerado excêntrico.)

6) O meu Grande-Medo era ouvir críticas que eu não soubesse responder; ou pior: críticas tão ferozes que não restasse nada de bom no meu trabalho. Isso é uma Grande-Bobagem, por vários bons e maus motivos… Um bom motivo é que, como escreveu Umberto Eco, se foi você mesmo que fez a pesquisa, você é a pessoa que mais saberá defendê-la. Confie nisso. Outro bom motivo é que todo trabalho tem pontos fortes (ou deveria). Valorize os seus caminhos e as suas opções.

7) Conheço orientadores experientes que aconselham seus alunos a defenderem-se a qualquer custo das perguntas da banca. Não concordo. Acho que é importante se valorizar, mas também reconhecer quando algo interessante (ou problemático) for sugerido. Uma das defesas mais legais que assisti foi a que o orientando fez questão de convidar uma banca feroz, só com professores famosos por serem durões. E, a cada pergunta, ele vibrava, anotava e dizia: “manda mais!” Tudo para poder responder de igual para igual depois! Foi um espetáculo.

8) Ainda um bom motivo para enfrentar o Grande-Medo: humildade faz bem. Como diz Steinbeck na epígrafe acima, quando não precisamos mais ser perfeitos, podemos ser bons. (Vovó Trude diz que o bom é inimigo do ótimo. Ela tem razão: queremos fazer teses incríveis, fantásticas e que vão revolucionar o mundo, mas vamos fazer apenas Teses. Ponto.)

9) Isso me lembra outro bom motivo para afastar o medo: a conclusão do doutorado é o começo da vida acadêmica e não o fim. É a partir da defesa que começamos a trabalhar de verdade. Sei que isso parece irreal agora (antes), mas vai por mim. A vida começa depois da tese.

10) Os maus motivos para não ter medo da defesa infelizmente também existem: quando seu(sua) orientador(a) ou os membros da banca não fazem um bom trabalho, não terminam de ler a tese, não se empenham em elaborar questões relevantes, não focam no seu tema, não estão interessados em contribuir com a sua pesquisa… Sem falar naqueles defeitinhos sórdidos: ciúmes, agressividade, inexperiência, preguiça. Enfim, uma prova de que os doutores continuam sendo humanos. Resta voltar ao ponto 9 e lembrar que a vida continua.

Foi pensando no tempo em que eu esperava os dias para a minha defesa (nos idos de 1998!) que fiz o desenho acima. Como já contei aqui, somatizo as minhas ansiedades e medos tendo pesadelos terríveis. Sonhava que tinha esquecido de entregar um capítulo, que não lembrava de levar a apresentação, que saía massacrada… Todo o roteiro acima (do 1 ao, infelizmente, 10 também).

O problema de quem tem muito pesadelo é voltar a dormir. Hoje, pela primeira vez, resolvi desenhar a imagem que me ajuda a retomar o sono de madrugada. Imagino que estou deitada na beira de um rio, embaixo de uma árvore, num dia bonito, e tento me concentrar na sensação de paz desse cenário. Aprendi esse tipo de visualização ainda adolescente, com uma professora de violão. Quase sempre dá certo.

Espero que o post e a imagem ajudem a todos a atravessar bem as defesas que vêm por aí! Boa sorte!

Update de fev/2017: leitores novos, sejam bem-vindos! O post tem sido lido por milhares de pessoas nos últimos dias mas o WordPress só me diz que o link vem de algum lugar do Facebook… Alguém poderia me mandar a origem para eu agradecer a referência? Podem postar nos comentários, mandar via mensagem de Facebook ou por e-mail! Obrigada ♥

Sobre o desenho: Registrei o processo antes de adicionar cor, pois estava insegura se ia dar certo (esse caderno Laloran é maravilhoso, mas não está com papel próprio para aquarela). As linhas foram feitas com canetinha nanquim Pigma Micron 0.3 e as cores com aquarela Winsor & Newton e waterbrush Kuretake.

Você acabou de ler “Defesa de doutorado: dez dicas para sobreviver (e aproveitar)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2015. “Defesa de doutorado: dez dicas para sobreviver (e aproveitar)”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url “http://wp.me/p42zgF-cG“. Acesso em [dd/mm/aaaa].


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Ensinando antropólogos a desenhar

Foto01Sei que ninguém está interessado em antropologia numa sexta-feira à noite, véspera das eleições presidenciais mais disputadas dos últimos tempos. Então aceitem minhas desculpas pelo “intervalo intelectual”: é que só hoje consegui cumprir o compromisso de publicar o post da semana!

Saiu o artigo sobre o curso de desenho e antropologia que criei no IFCS/UFRJ! A experiência começou no primeiro semestre de 2013 e já está na terceira turma. Nesse texto, explico de onde veio a ideia do projeto e como desenvolvi algumas das oficinas propostas. Um resumo do resumo do artigo:

Apresento neste trabalho os resultados de uma experiência de ensino chamada “Laboratório de Antropologia e Desenho”, que propõe o desenho como ferramenta central para a pesquisa etnográfica. Alunos sem formação prévia na área foram apresentados ao ato de desenhar como uma forma de se conhecer o mundo.

Através de aulas práticas, as convenções em torno do desenho acabaram desconstruídas para, em seu lugar, reencontrarmos novas formas narrativas capazes de evocar graficamente ideias, encontros, diálogos, observações e percepções sobre a vida social. Por meio de exercícios, tratamos da formação dos pesquisadores aos dispositivos de diálogo e troca com o universo pesquisado, passando pelo processo de registro dos dados e da divulgação dos resultados.

Buscamos explorar as consequências, perguntas e soluções que emergem do ato de se ensinar a desenhar e construir narrativas gráficas no (e sobre o) trabalho de campo.

Na publicação, faço os muitos agradecimentos necessários e cito os autores que me ajudaram a pensar e planejar essa aventura. Mas queria deixar registrado um <<muito obrigada>> especial aos estudantes (bolsistas e alunos) que colaboraram ao longo do curso e que cederam seu tempo, suas imagens e seus textos para a pesquisa.

Espero que gostem!

O artigo completo pode ser lido aqui: Ensinando antropólogos a desenhar: uma experiência didática e de pesquisa. Foi publicado como parte do dossiê “Imagem, pesquisa e antropologia”, organizado por Andréa Barbosa (Unifesp), para a revista Cadernos de Arte e Antropologia, v.3, n.2. Vale a pena ver também os outros textos desse excelente volume.

Cordeiros da Bahia

Em breve, brevíssimo, uma versão em inglês do meu artigo estará disponível. E para quem tiver interesse em ler outros textos que escrevi sobre o tema: estão aqui.

Planos!

Agora – Estou escrevendo um artigo sobre os resultados dos trabalhos finais dos alunos (buscando incluir o material das três turmas que já passaram pelo curso).

No horizonte – Publicar online os destalhes de todas as oficinas (que se renovaram bastante desde o primeiro curso) para alunos e professores que queiram experimentar os exercícios em suas aulas.

Para 2015 – Começa uma outra fase da pesquisa. O tema é… surpresa!

Sobre o desenho inicial desse post: A imagem foi feita por mim num Ipad (App Adobe Ideas, caneta Bamboo) a partir de uma fotografia das alunas Poema Eurístenes (desenhando) e Bárbara Machado (sendo desenhada) tirada em sala de aula, no IFCS/UFRJ, durante uma das oficinas do curso.


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A cor salva!

out2014-fb

Estamos todos — adultos, crianças & gatos — nos sentindo engaiolados no micro-apartamento provisório. Daí a vontade de desenhar pássaros sem gaiolas para o calendário de outubro. Decidi que não posso abandonar os temas coloridos para esse enfeite-útil das nossas geladeiras. Na falta de boas tiradas da Alice, a cor salva!

Queria aproveitar também para dizer:

Obrigada de verdade a tod@s que têm mandado mensagens e comentários positivos sobre o blog! Sei que não tenho conseguido responder, mas cada linha enviada me dá uma força enorme para continuar com essa ideia maluca de desenhar e escrever toda semana.

Só agora, aliás, me dei conta de que este blog também é uma espécie de trabalho voluntário: tem que ralar muito, ter compromisso (mas não obrigação), acolher as próprias dificuldades e apoiar quem está à volta. Mas o retorno é o máximo: a sensação de se sentir útil!

Tive a sorte de virar voluntária quando fiquei grávida do Antônio, em 2000. Me apaixonei pelo grupo Amigas do Peito, de apoio à amamentação, onde atuei intensamente por 11 anos. Em 2010, com as minhas duas crianças desmamadas, me aproximei do apoio aos animais de rua, ajudando a encontrar lares para dezenas de gatinhos abandonados. Nessas duas atividades, acabei criando os blogs, lidando com muitas pessoas, aprendendo e recebendo muito mais do que pude oferecer, como diz o clichê-super-verdadeiro sobre o tema.

Há uns três anos, mantive as amizades, mas acabei precisando me afastar. Eu ia escrever que foi “por falta de tempo”, mas não. Não rola falta de tempo quando a gente se apaixona por uma causa! A verdade é que… bem, eu me apaixonei sim, mas foi pelo meu namorado. E paixão depois dos 40 é um trem que a gente não pode deixar passar, sô!

Agora que estamos virando um casal normal, com espaço para o resto do mundo, percebo que a vontade de me dedicar a alguma causa está crescendo de novo. Quando eu era “antropóloga da política”, não conseguia nem imaginar misturar trabalho com voluntariado, como muitas amigas que admiro fazem. Mas desde que virei “antropóloga que desenha”, vejo um mundo de possibilidades se abrindo… tenho certeza de que em breve vou conseguir juntar tudo! Deixa só eu me mudar, me aguardem!

E para fechar o post, mais uma brincadeira de casinha! Nunca pensei que ia encarar uma loucura gótica dessas, mas aí está! Graças ao amor pelo futebol da Alice, que conseguiu convencer até o Antônio a jogar com ela, passei uma hora e pouco fazendo esse desenho no último domingo. Depois, já em casa, terminei de desenhar os tijolinhos, acrescentei as sombras e os dois detalhes ao lado, tendo como referência fotos feitas com o celular.

gurilandia

 

Sobre os desenhos: Os pássaros do calendário foram feitos a partir de fotos do Google, com canetinha Pigma Micron 0.005, e coloridos com lápis de cor Prismacolor (não aquarelável) e CaranD’Ache (aquarelável). Tenho a felicidade de ter duas caixas grandes de 72 e 80 lápis cada uma, que considero entre os bens mais valiosos da minha casa! Quase morri uma vez que a Alice levou uma delas para a escola, porque decretou que não podia fazer os trabalhinhos do segundo ano sem aquelas 80 cores diferentes… Alice sendo Alice! (O pior é que eu concordo e me identifico tanto com ela… se a minha mãe tivesse uma caixa dessas, eu ia ser a primeira a tentar “pegar emprestado” e nunca mais devolver…)

O desenho da Gurilândia, uma casa-clube em Botafogo, foi feito com a mesma caneta 0.005 e depois sombreado com a aguada de nanquim que uso na waterbrush Sakura. As crianças votaram para eu deixar preto & branco. Então assim ficou! Mas acho que, no fundo, nós três ficamos com medo de que eu não acertasse nas cores e “estragasse” o desenho. Descobri no encontro de Paraty que muita gente tem esse medo… Bora enfrentar.

 

 

 


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Aos treze

Celina

Essa semana o meu desafio foi voltar no tempo. Não em busca de uma memória específica, um episódio ou um acontecimento. Não… Passei os dias tentando me lembrar de como eu vivia e sentia aos treze anos.

Ter formação em antropologia ajuda? Um pouco. Afinal, a gente vem se debatendo há décadas com a busca por conhecer o mundo pelo ponto de vista dos outros. E “eu, aos treze” era definitivamente uma outra…

O problema é que fazer isso só é fácil na teoria. “Basta não ser etnocêntrico”, diz o livro. Qualquer aluno de ciências sociais acha que tira de letra. Porém, é só pedir um exercício prático que a compreensão vai pelo ralo. Vejam um frase de um estudante do primeiro período (de muitos anos atrás) sobre o universo que tentava analisar:

“Eram pessoas muito diferentes de mim. Eu me senti um estranho, mas depois até que fui me acostumando e achando que eles eram legais.”

Pois é… Não acrescentou nada!

Mas hoje vejo essa frase de forma menos crítica. No fundo, ele escreveu o que todo mundo sente. Compreender o outro não é passar a achá-lo menos estranho e menos chato?

Eu até costumava mostrar essa frase como exemplo do que não escrever num diário de campo. Em seguida, mostrava um trecho de “boa prática” na escrita acadêmica, de uma aluna estudando jogadores de games:

“Esse grupo tem toda uma linguagem particular que aos poucos fui aprendendo. Por exemplo: ‘– Como foi na prova da Petrobras?’ ‘– Ah, foi só para ganhar XP.’ (XP é uma pontuação do jogo. Ele quis dizer que foi mal, mas serviu para ganhar XP=experiência.)”

Pronto. Pelo menos aprendemos alguma coisa.

Voltando à minha volta no tempo. De repente, consegui me lembrar. Quando eu tinha treze anos estava com a paixão à deriva! Sentia a existência dessa coisa maravilhosa, doida, dolorida… Tinha uma força pulsando no peito (e em outras partes do corpo!) e não sabia o que fazer com ela. Ansiava por viver aquilo que (achava que) já sabia na teoria… Escrevia cartas para namorados imaginários… Ia pulando de sonho, de canção, de ídolo, de amor imaginado, numa espécie de eterno viver-em-tese…

E por que essa viagem? Porque meu filho tem treze anos e meio. E eu o amo profundamente… e anseio por me sentir mais conectada com as descobertas e angústias que ele está vivendo. (Sem deixar de ser a mãe.)

Agora já me sinto um pouquinho menos ignorante. E também posso dizer: é difícil, mas vai passar. Daqui a pouco chegam os quatorze, os quinze e finalmente os mágicos dezesseis!

Sobre o desenho: Hoje passei duas horas no trânsito (não, não é modo de dizer). Mas no meio do caminho avistei minha sobrinha Celina Kuschnir, assim mesmo, de calça (ou meia-calça) azul e capa-de-chuva vermelha (ou seria um vestido?). Uma coisa linda de se ver, toda Amelie Poulain, no meio da Rua São Clemente! Gritei por ela, que se virou e me deu um oi-tchau e um sorriso de longe. Assim que cheguei em casa, tentei desenhar a cena, que vai aí em cima em canetinha Uninpin 0,1 e aquarela. Sei que está bem tosca, mas acho que é uma boa ilustração de alguém vivendo a idade-na-idade-que-tem. E um bom lembrete para mim: viver no presente, pois até no meio de um trânsito horrível pode surgir um desenho cor de rosa!

Sobre o título desse post: “Aos treze” é também o título de um filme (2003, direção Catherine Hardwicke) que vi por sugestão de minhas alunas (na época, da PUC-Rio), que fizeram um ótimo trabalho sobre o tema da adolescência no cinema.